2 de dezembro de 2011

O Estado como pacemaker da valorização do valor



Foi o soberano que se apossou do ouro e da prata para fazer
deles os agentes universais de troca, neles imprimindo a sua
chancela, ou foram, ao contrário, esses agentes universais de
troca que se apoderaram do soberano, forçando-o a imprimir
 neles a sua chancela e a dar-lhes uma consagração política?

Karl Marx, A Miséria da Filosofia


No final de 2008 os pedidos de ajuda do sistema bancário fizeram as delícias da esquerda parlamentar e amante do estado. Os pacotes de resgate estatais desmentiam as ilusões do monetarismo e a supostamente salutar desregulação do neoliberalismo, fazendo emergir um neo-neo-keynesianismo na esquerda ao mesmo tempo que potenciavam a defesa do Estado na sua generalidade, ou seja, da própria forma estatal tout court, à qual cabe supostamente zelar pelo justo funcionamento da forma económica do sistema moderno produtor de mercadorias. Entretanto, ainda a esquerda tinha começado a lançar foguetes de estatismo e já os Estados viam os deficits das finanças públicas rebentarem-lhe em ambas as mãos.

Apesar das óbvias contradições é sistematicamente escamoteado que monetarismo e estatismo são duas faces da mesma moeda do sistema moderno produtor de mercadorias (quando um modelo falha o outro logo surge no seu lugar) e que ambos os modelos procuram ocultar que há décadas que a insuficiente valorização real do capital e o correspondente carácter estruturalmente deficitário da “economia real” são ocultados pela sistemática injecção de capital fictício, fruto de bolhas financeiras do mercado dos derivados. O problema vai mudando de sítio mas não só mantém-se como aumenta progressivamente.

Uma das barreiras ideológicas fundamentais que está na base desta opacidade do problema é o pressuposto metafísico de equilíbrio que historicamente tem acompanhado o sistema moderno produtor de mercadorias. No monetarismo, a ideologia do equilíbrio há muito que é alimentada pela teoria económica neoclássica (sobretudo desde Walras) que serve de base à ideologia neoliberal da harmonia interna e da “mão invisível” da “economia de mercado”; aqui o sistema está supostamente em equilíbrio objectivo e apenas pode ser subjectivamente perturbado por intromissões estatais. No estatismo, o problema expressa-se exactamente na forma inversa: reconhece-se de algum modo a existência objectiva de uma perturbação no sistema mas acredita-se atingir o equilíbrio justamente através de acções subjectivas estatais. Claro que aquilo que escapa a ambos é o carácter fetichista e dinâmico do sistema moderno produtor de mercadorias na sua globalidade e que não pode de modo algum ser captado através da tradicional oposição sujeito-objecto, o que Marx percebeu muito bem quando designou o capital como “sujeito automático”. Aliás, não é por acaso que no contexto actual um mesmo indivíduo pode expressar simultaneamente opiniões monetaristas e estatistas; aquilo que hoje importa acima de tudo é “conservar o valor já criado como valor” (Marx).

A incapacidade em reconhecer esta relação dinâmica, interna e objectiva da “valorização do valor” (Marx) tem levado à ininterrupta subjectivação e personificação das crises e à imediata e consensual definição pública de bodes expiatórios. Assim, o problema não é o movimento histórico inconsciente do sistema moderno produtor de mercadorias e sua forma de “riqueza abstracta” (Marx) e fetichista mas antes um qualquer malandro de fato que deturpou ou violou o sistema que de outro modo funcionaria muito bem. O problema não é portanto o capital em si mesmo mas apenas o capital monetário que rende juros, ou melhor, aqueles que o gerem gananciosamente (o que na maioria das vezes é identificado com os judeus). Esta forma ideológica e superficial de crítica em coro quase universal possibilitou mesmo um Óscar de Hollywood para melhor documentário ao filme “Inside Job” (2010).

O ex-deputado do PCP Octávio Teixeira deve ter gostado de “Inside Job”. Provavelmente aguarda ansiosamente a sequela europeia e gostaria que o Estado tivesse da próxima vez o papel principal. O seu artigo “Recapitalizar a banca sim, favorecer os bancos não” é assim um caso exemplar desta problemática. Aí é dito:


Tal como na generalidade da esquerda, fazer da necessidade uma virtude é aqui o mote. Octávio Teixeira não se limita a confirmar que o crédito é a base actual do sistema moderno produtor de mercadorias na sua globalidade, o que inclui também obviamente a forma estatal; ele faz a sua total apologia. Ele não se limita assim a afirmar que o sistema bancário é de facto "o coração que faz circular o sangue da economia" do sistema moderno de produtor de mercadorias; tal como os restantes amantes da forma estatal, ele parece sobretudo empenhado em garantir o ressurgimento do Estado como pacemaker do “sujeito automático” (Marx) do capital, ao mesmo tempo que escamoteia completamente que o próprio Estado há muito tempo que depende de créditos do sistema financeiro. E a forma como o faz é também sintomática da miséria conceptual da esquerda actual.

Da crescente importância social do capital financeiro não se pode retirar qualquer conclusão lógica (“Assim”) de que “o sistema bancário é um efectivo bem público”. Em primeiro lugar, o sistema moderno produtor de mercadorias é um sistema de produtores privados e o sistema bancário é composto por agregados de capitais monetários privados; se um estado ou qualquer entidade pública tutelar, gerir ou participar como accionista nesses agregados será para garantir que de um euro se continua a fazer dois euros no jogo do capitalismo de casino global, não alterando em nada a questão. Em segundo lugar, um bem público só pode ser um bem nacional, ou seja, com uma escala que o sistema financeiro há muito transcendeu. Não é por acaso que Teixeira prossegue com uma condição (“sendo-o”), à qual junta um dever do Estado, para no fim desmentir o sistema bancário como “efectivo bem público” (“a situação actual não é essa”). Portanto: o sistema bancário é “um efectivo bem público”, pode não sê-lo e hoje não o é; a confusão é total. Na realidade, o sistema bancário como “bem público” só existe na cabeça de Octávio Teixeira; não passa portanto do tradicional wishful thinking de esquerda.

Fazendo fé no que é “generalizadamente reconhecido”, também aqui se acredita que a crise do sistema moderno produtor de mercadorias resulta de meros “erros e irresponsabilidade dos banqueiros” que teimam em não reconhecer o sistema bancário como um “bem público” a salvaguardar para que os bancos possam mais uma vez “exercer a sua função de concessão de crédito à economia real”. A decadência da explicação acompanha aqui, passo a passo, a decadência do sistema.

6 de novembro de 2011

O bárbaro como sujeito?

A barbárie é imanente ao sistema moderno produtor de mercadorias. Aqueles que estão dispostos a admiti-lo sem criticar radicalmente o seu carácter fetichista podem entretanto sempre evocar descansadamente que existem maus bárbaros e bons bárbaros, uma má barbárie e uma boa barbárie. Ou seja: no lugar de uma crítica radical da forma bárbara do “sujeito automático” (Marx) vem antes umas meras achegas ao seu conteúdo. Essa é certamente a opção de António Guerreiro no texto “Os bárbaros que não chegam”; título messiânico que deve tanto a Walter Benjamin quanto a tese principal da sua argumentação, baseada no ensaio “Experiência e pobreza” de 1933. Guerreiro afirma:


É certo que “todos aqueles que criticam o sistema em que vivemos, hoje à beira do colapso, parecem querer salvá-lo; mas Guerreiro nem repara que um “salto” que permita “pôr a questão de um recomeço” só pode ser obrigatoriamente um salto para trás, a partir do qual o sistema moderno fetichista poderia então recomeçar pintado de novas cores. Não é assim por acaso que o núcleo desta argumentação de uma “barbárie positiva” já se encontrava em Lenine em 1918, quando este “bom bárbaro” andava às voltas com a sua imposição politicista do fetichismo da “valorização do valor” (Marx) e a correspondente ditadura de modernização soviética e de capitalismo de estado:


Desconhecemos se Benjamin tinha conhecimento da afirmação de Lenine; mas estas semelhanças não podem ser descartadas como meras coincidências e muito menos reproduzidas hoje acriticamente sem qualquer reflexão histórica, como faz António Guerreiro. De facto, tanto Benjamin como Lenine escrevem num contexto histórico de ascensão e modernização do sistema moderno produtor de mercadorias: a ascensão do sistema barbárico é vista como uma necessidade histórica inevitável, mas ainda pode ser boa ou má em função do respectivo sujeito histórico, o bom bárbaro proletário oprimido ou o mau bárbaro capitalista opressor. Assim, Benjamin poderia muito bem estar a descrever a barbárie leninista quando diz:


Por outro lado, como não ver também neste texto de Benjamin o carácter fetichista do auto-movimento histórico da “valorização do valor”, integrando simultaneamente proletários e capitalistas; movimento que “impele” o sujeito monetário e concorrencial “a partir para frente”, “a começar de novo”, “sem olhar nem para a direita nem para a esquerda”, movimento feito de “homens implacáveis que operaram a partir de uma tabula rasa”. Visto deste modo, tabula rasa não pode ser visto como o motivo subjectivo de oposição ao sistema moderno produtor de mercadorias mas reconhecido justamente como o seu inverso: como lógica fetichista objectiva arrasadora de todos os conteúdos sociais e culturais sensíveis, forçando-os à forma mercadoria, e precisando para tal de “homens implacáveis”, sujeitos masculinos bárbaros da imposição e “legislação sanguinária” (Marx). Ou seja: o “progressivismo supra-ideológico” criticado por Guerreiro e o sujeito de tabula rasa que defende são uma e a mesma coisa: o “sujeito automático” do capital.

Não por acaso, Guerreiro passa completamente ao lado da evolução do conceito de barbárie em Benjamin, que certamente não desconhece. O ensaio “Experiência e pobreza” é de 1933; sete anos depois e já a meio da barbárie hitleriana, Benjamin é muito menos optimista na referência à barbárie nas suas “Teses sobre o conceito da história”:


Apesar das semelhanças com o primeiro ensaio no tom messiânico, aqui a relação entre cultura e barbárie não é pensada como boa e má barbárie mas justamente na sua reciprocidade histórica negativa, cujo reconhecimento possibilita um novo olhar sobre um passado de sofrimento humano onde “o amontoado de ruínas cresce até ao céu”. O que importa fundamentalmente considerar é o carácter necessariamente barbárico de toda a cultura baseada em formas sociais fetichistas, formas de consciência social inconscientemente constituídas, mas sem que todos os produtos culturais possam ser resumidos a isso; trata-se portanto da relação incoerente entre forma (social) e conteúdo (material). Esta ideia de Benjamin foi justamente aprofundada criticamente por Robert Kurz numa perspectiva da história das relações fetichistas (Cf. Ontologia Negativa e Tabula Rasa).

A fase histórica de ascensão e imposição do sistema moderno produtor de mercadorias acabou; aproximando-se do seu limite interno absoluto o sistema fetichista está antes “hoje à beira do colapso”, como o próprio António Guerreiro afirma. Assim, a correspondente dialéctica histórica entre bons bárbaros e maus bárbaros deixa de ter qualquer legitimidade ideológica; ambos devem ser reconhecidos como impositores históricos do sistema moderno produtor de mercadorias. Evocar agora romanticamente e de forma anacrónica as teses de Benjamin da “barbárie positiva”, redigidas antes de Auschwitz e do Gulag, não deve ser visto como um ponto de partida crítico do sistema moderno produtor de mercadorias mas antes como um sintoma de total desorientação conceptual na vertigem do seu colapso, evidente na leviana tentativa de apresentar o bárbaro bonzinho como sujeito fetichista a ser ansiosamente aguardado.

16 de outubro de 2011

Os protestos de Zizek e o espírito santo do capitalismo

Paul Lafargue escreveu “A Religião do Capital” mas antes dele já o seu sogro, Karl Marx, havia usado metáforas religiosas por diversas vezes para ilustrar o carácter absurdo do sistema moderno produtor de mercadorias. Porventura, a metáfora mais expressiva e conhecida encontra-se na analogia de Marx do fetichismo da mercadoria com a "região nevoenta do mundo religioso", onde "os produtos da cabeça humana parecem figuras autónomas, dotadas de vida própria". Esta analogia do "carácter místico da mercadoria" com o mundo religioso é utilizada obviamente de forma negativa e determinada, apontando para a irracionalidade da totalidade do contexto de reprodução social.

Recentemente a esquerda tem expressado uma tendência inversa: procurar no "mundo religioso" justamente pontos de apoio afirmativo para a crítica social parcial. Assim, depois de Hardt e Negri recorrerem no final de “Empire” a S. Francisco de Assis e à sua “alegria do Ser”, e Badiou falar-nos de S. Paulo como modelo para um “novo Lenine”, chegou a vez do “padre” Slavoj Zizek afirmar na "missa" que realizou na acampada de Wall Street que esta acção é uma manifestação do "Espírito Santo" e que os corretores da Bolsa "são os pagãos que adoram ídolos blasfemos". Não admira que os padres reais afirmem que "a crise é uma oportunidade para a igreja".

Embora Zizek afirme que “o problema é o sistema” (o que também é apenas uma forma tosca e positivista de aproximação ao fetichismo da mercadoria), nem lhe passa pela cabeça usar o “espírito santo” como analogia religiosa negativa do capital enquanto “sujeito automático” (Marx) ou da mercadoria como "forma fantasmagórica" (Marx) do valor e do trabalho abstracto; ou seja, o Espírito Santo como sistema religioso que integra simultaneamente corretores bolsistas e acampados. Zizek vai justamente na direcção oposta: define positivamente o Espírito Santo (e a acampada de Wall Street) como “uma comunidade igualitária de crentes que estão ligados pelo amor um pelo outro, e que só têm a sua própria liberdade e responsabilidade para este amor”. Mas crentes em quê? Zizek não nos diz. No entanto, se lermos crentes “no capital” e amor “ao capital”, obtemos uma metáfora negativa perfeita da expressão do sistema moderno produtor de mercadorias na esfera igualitária do mercado, esfera onde efectivamente começa e acaba toda a “liberdade e responsabilidade” na sociedade capitalista.

Como Marx mostrou, a célebre igualdade dos direitos humanos não passa da expressão ideológica da igualdade fetichista dos sujeitos monetários perante o mercado, mas onde a qualquer momento a violência e dominação podem rebentar. Não é assim por acaso que, apesar de toda a conversa fiada sobre igualdade e amor, Zizek classifica os corretores de “pagãos”, esquecendo o uso barbárico desta classificação social ao longo da história (e com uma estratégia discursiva perigosamente semelhante ao uso do termo “infiéis” pelos terroristas islâmicos), e simultaneamente pergunta sem qualquer pudor: “que tipo de novos líderes queremos?”. Involuntariamente, entre o misticismo do espírito santo do capital e questões de liderança política, Zizek aproxima-se da teologia política de Carl Schmitt. Talvez por isso mesmo Zizek tenha hoje tantos apóstolos.


Missa de Zizek e coro de apóstolos

Capa da revista Notícias Magazine (16/10/2011)




29 de setembro de 2011

A educação para a barbárie: segunda lição.

Vi efeitos que todos os anos produzem em abundância novas causas.
Stanislaw Jerzy Lec


Em “A educação para a barbárie” já havia referido que a tese fetichista do ministro da educação, Nuno Crato (“estudar vale a pena para poder ganhar mais dinheiro”. “Eu acho que devemos dizer isso aos jovens”), há muito que roda em falso. Tanto o sistema público de ensino como uma crescente fatia de estudantes universitários dependem de capital sem substância; endividamento estatal, por um lado, e crédito pessoal, por outro. Não foi por isso preciso muito tempo até o ministro rever a sua tese. A promessa do governo anterior de premiar com 500€ os dois melhores alunos do ensino secundário de cada uma das escolas do sistema nacional de ensino antecipou, de certo modo, a tese de Nuno Crato; mas foi este a vir desmenti-la, cancelando os tão esperados cheques, escassas semanas depois do seu “apelo à eleição do fetiche monetário como princípio pedagógico”. Num quadro de colapso financeiro, este cancelamento tem claramente motivos objectivos que expõem Nuno Crato a contradições. Mas existem também motivos ideológicos na decisão. Enquanto o prémio do governo anterior se apoia no Estado simultaneamente como pedagogo da concorrência entre sujeitos monetários e recompensador dos vencedores, para Nuno Crato, o sujeito concorrencial do valor deve aprender a ser autónomo e a procurar recompensas por si próprio na esfera do mercado, porque “nesta altura de crise, andar a distribuir, a oferecer dinheiro às pessoas” não lhe “parece bem”.

Tanto o prémio do governo anterior como o apelo de Nuno Crato assentam na “pedagogia do fetichismo do dinheiro”; partilham portanto o sistema de referência negativo e socialmente destrutivo da sociedade da mercadoria. E entre o colapso do pólo estatista e a ilusão do pólo monetarista, a educação para a barbárie tem entretanto aqui a sua segunda lição.


19 de setembro de 2011

Modos de ver da dissociação-valor



Poster das Guerrilla Girls (1989)


“Segundo costumes e convenções que, finalmente, têm vindo a ser postos em causa, mas que de modo algum foram ultrapassados, a aparência social da mulher é de espécie diferente da do homem (...) Uma presença masculina sugere sempre o que o homem pode fazer a nós ou para nós. A sua presença pode ser fabricada, no sentido em que pode querer passar por aquilo que não é. A pretensão, no entanto, é sempre a de aparentar um poder que se exerce sobre outros.


Por contraste, a presença de uma mulher exprime a sua atitude para consigo própria e define o que se lhe pode ou não pode fazer. A sua aparência manifesta-se nos gestos, na voz, nas opiniões, nas expressões, na roupa que usa, no ambiente que escolhe, no gosto – na verdade, não há nada que faça que não contribua para a sua aparência. A aparência, para uma mulher, é tão intrínseca à sua pessoa que os homens tendem a considerá-la uma emanação pessoal, uma espécie de calor, um aroma ou uma aura.


Nascer mulher é vir ao mundo dentro de um espaço definido e confinado, à guarda do homem. A aparência social das mulheres evoluiu como resultado do seu talento para viver, sob essa tutela em espaço tão limitado. Mas isto só foi possível dividindo em dois o ser individual da mulher. Uma mulher tem de tomar conta de si própria permanentemente. Está quase sempre acompanhada pela imagem que tem de si. Quando atravessa uma sala ou chora a morte de alguém, dificilmente pode evitar ver-se a si própria andando ou chorando. Desde a mais tenra infância, ela foi educada e persuadida a “ver o que faz”.


E, assim, acaba por considerar o vigilante e a vigiada que há dentro dela como os dois elementos constitutivos, embora diferentes, da sua identidade como mulher.


Tem de vigiar tudo o que é e tudo o que faz, pois a sua aparência, e, em primeiro lugar, a sua aparência perante os homens, é de importância decisiva para o que poderá ser geralmente considerado o seu êxito na vida. O seu próprio sentido daquilo que é, é suplantado pelo sentido de ser apreciada como tal por outrem.


O homem, por sua vez, vigia a mulher, antes de tomar conta dela. Por isso, o modo como uma mulher aparece a um homem pode determinar o modo como ele a tratará. Para obter algum controlo sobre esse processo, as mulheres têm de contê-lo e interiorizá-lo. A parte da mulher que constitui o vigilante trata a parte que constitui o vigiado de forma a dar aos outros o exemplo de como a sua totalidade gostaria de ser tratada. Este tratamento exemplar de si por si própria constitui a sua aparência. A aparência de qualquer mulher define o que é ou não é “permitido” na sua presença. Cada uma das suas acções – quaisquer que sejam os objectivos ou as motivações – é lida como a indicação de como ela gostaria de ser tratada. Se uma mulher atira um copo ao chão, é esse um exemplo de como trata as suas emoções de raiva e, portanto, de como deseja que essas emoções sejam tratadas pelos outros. Se um homem faz o mesmo, a sua acção é interpretada apenas como expressão da sua zanga. Se uma mulher diz uma boa graça, esse é um exemplo de como trata a humorista que existe em si e, portanto, o modo como ela, enquanto humorista, gostaria de ser tratada. Só os homens podem dizer uma graça pelo simples prazer de a dizer.


Poder-se-ia simplificar tudo isto dizendo: os homens agem, as mulheres aparecem. Os homens olham para as mulheres. As mulheres vêem-se a serem vistas. Isto determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres como também as relações das mulheres consigo próprias. O vigilante da mulher dentro de si própria é masculino: a vigiada, feminina. Assim, a mulher transforma-se a si própria em objecto – e muito especialmente num objecto visual: uma visão.

Berger, John (1996[1972]); Modos de ver; Edições 70, Lisboa; pp. 49-51, tradução corrigida, sublinhado meu.

9 de setembro de 2011

A educação para a barbárie



Será que um dia exploraremos de modo industrial as almas humanas?
Stanislaw Jerzy Lec


A barbárie também se ensina. E se existe um manual B-A-BA da nova barbárie o ministro da educação resumiu a primeira lição de forma exemplar. Mas com isso o mundo também não aprendeu nada. No entanto, se levarmos até ao fim o pensamento crítico dialéctico devemos acima de tudo agradecer ao ministro por condensar, a contragosto e de uma forma rara, a pedagogia do fetichismo do dinheiro.

Afinal de contas, já não precisamos de ler Marx para saber que as escolas são verdadeiras “fábricas de ensinar” e meras condições necessárias à “valorização do valor”. E também já não precisamos de ler Foucault para saber que uma significativa parte do tempo que lá passamos é de facto penosa. É o próprio ministro que nos lembra tudo isso, começando por perguntar, através de uma expressão linguística irreflectida mas plena de significado, se a educação “vale a pena”; porque o ensino é de facto cada vez mais penoso, e se o capitalismo nos ensinou alguma coisa é que sem sofrimento humano o valor não se valoriza. (O que não significa que todo o sofrimento humano “gere” valor).

E como o sofrimento não é uma mera ideia mas antes inseparável da matéria, o ministro sente-se na obrigação de justificar o seu materialismo tão maldito frente ao idealismo pedagógico, evocando uma velha dicotomia armadilhada. É que o ministro tem uma ideia: que o dinheiro é efectivamente um fenómeno material e não uma mera representação social fetichista. E o fetichismo é feito de inversões assim. Quando uma abstracção social governa realmente o mundo, quem tem razão? Os idealistas ou os materialistas?

Evocando a relação entre educação e dinheiro, o ministro verbaliza o tabu matricial do ensino na sociedade da mercadoria. E como bom ideólogo que é, fá-lo ocultando-o melhor. O dinheiro-mercadoria-mais dinheiro (D-M-D’) de Marx é, neste caso, dinheiro-ensino-mais dinheiro. Ora, o ministro só quer falar da relação entre os dois últimos momentos. E não só ignora propositadamente a primeira relação (dinheiro-ensino) como omite que a segunda já começou a rodar em falso num contexto de desemprego estrutural à escala global. É completamente escamoteada a quase completa falência dos sistemas públicos de ensino nos países ditos desenvolvidos; sistemas esses que são financiados não só através de impostos aos rendimentos dos sujeitos monetários mas também através de endividamento estatal. Esta situação é ainda mais evidente para o financiamento do ensino universitário que tem esboçado uma tendência para um aumento progressivo do custo dos diversos cursos e graus académicos. Neste contexto, é clara também a correspondente tendência para o endividamento pessoal para o acesso a graus de formação universitária. Um pouco por todo o mundo, mas sobretudo nos países anglo-saxónicos, tem disparado nos últimos anos o número de créditos pedidos por estudantes para o acesso a cursos e graus universitários. Ora, isto faz dos cursos universitários mercadorias financiadas a crédito (endividamento estatal) e consumidas também com créditos (pessoais), ou seja, crédito à segunda potência; não admira que se fale já da formação mundial de uma “bolha académica” de dimensão semelhante à bolha do crédito habitacional. Para o rebentar da bolha, o desemprego de mestres e doutorados endividados dará uma belíssima ajuda. Para estes, “ganhar mais dinheiro” não precisa de ser lembrado como princípio motivacional subjectivo mas é antes uma imposição imanente à sua condição de plenos sujeitos monetários. Não precisam, portanto, que o ministro lhes venha ensinar.

Mas o ministro preocupa-se acima de tudo com as novas gerações de sujeitos monetários concorrenciais. Assim, aquilo que numa primeira leitura generosa poderia ser interpretado como mero realismo cru sobre a objectividade fetichista da sociedade da mercadoria, revela-se muito mais do que isso: um inequívoco e insano apelo à eleição do fetiche monetário como princípio pedagógico. 

18 de julho de 2011

"Excesso por excesso"

O sistema de crédito, em que tudo se pode antecipar, inclusive a conquista do mundo, determina igualmente as acções que preparam o seu próprio final e o de toda a economia de mercado, até ao suicídio da ditadura (…)
Imiscuir-se na luta final da concorrência significava saltar para o abismo, e optou-se antes por empurrar os outros para o mesmo, na fé de assim se poder dissuadir (…)
Tranquila, imperturbável, segue a nau o seu rumo quando, de repente, se afunda a pique. Quando não há saída, ao impulso de aniquilação é totalmente indiferente o que nunca com clareza distinguiu: se se dirige contra outros ou contra o próprio sujeito.

Adorno, Th.W. (1951/2001); Minima Moralia; Lisboa: Edições 70; 67 - Excesso por excesso.

14 de julho de 2011

Dinheiro não-vivo

O jornalismo económico está claramente em alta. Não porque se tenha tornado mais rigoroso mas justamente pelo inverso: num quadro de falhanço total das previsões dos optimistas tagarelas com licenciatura, mestrado, doutoramento e Nobel em economia o descrédito é hoje total e, por isso mesmo, qualquer pessoa pode agora escrever um best seller sobre política monetária, gestão do orçamento familiar e as vantagens económicas em aproveitar as sobras do jantar de ontem.

Em Portugal, as oportunidades para o jornalismo económico cresceram entretanto exponencialmente com a crise da dívida pública, o auxílio financeiro internacional e o declínio do poder de compra da classe média. É neste contexto da maior crise económica mundial que surgiu no último mês um novo jornal económico digital com o paradoxal título de “Dinheiro Vivo”. Uma interpretação ligeira da escolha deste nome, e talvez aquela que realmente a motivou, poderá lembrar-nos o uso desta expressão popular na vida quotidiana; como quem diz “Nem fiado, nem cheque! O que eu quero é dinheiro vivo!”. Esta interpretação poderá evocar de certa maneira o actual quadro generalizado de incumprimento das dívidas diárias dos sujeitos monetários, e talvez por isso mesmo o jornal também afirme desejar cobrir os temas económicos “de forma próxima das pessoas”. Esta interpretação também poderá lembrar a diferença entre a suposta realidade do dinheiro e a sua mera promessa (fiado) ou representação (cheque). É claro que com isso também se escamoteia que o dinheiro é ele próprio uma representação fetichista. O que para um jornal económico deve ter pouco interesse.

Isto leva-nos à possibilidade de podermos fazer uma leitura mais essencial e que porventura também escapa às intenções da escolha do nome do jornal: no capitalismo-casino o dinheiro circula de tal modo que aparenta estar “vivo”. Esta metáfora, porém, é tudo menos nova. Nos seus primeiros escritos no início do século XIX, Hegel já havia concebido como princípio do dinheiro “a vida do que está morto movendo-se em si própria”. O dinheiro é definido, portanto, como um morto-vivo; o movimento autónomo do não-vivo.

Ao leitor atento torna-se óbvia a semelhança desta linguagem feita de oximoros com aquela usada por Marx para a sua definição de capital como processo de “valorização do valor” e da sua crítica do fetichismo da mercadoria e do trabalho abstracto. Marx mostra como, observado na mera esfera da circulação, o valor apresenta-se como um “sujeito automático”, um processo de “auto-valorização”, passando constantemente da forma mercadoria à forma dinheiro, “substância em processo e semovente, para a qual mercadorias e dinheiro são ambos meras formas”; o dinheiro é assim a “forma autónoma” do valor, “por meio da qual a sua identidade consigo mesmo é constatada. E essa forma ele só possui no dinheiro. Este constitui, por isso, o ponto de partida e o ponto final de todo processo de valorização” (Marx, 1867/1996: 274).

Nas sociedades pré-capitalistas o dinheiro desempenha um papel subordinado na troca de mercadorias, cujo consumo final eram o próprio objectivo da troca, por exemplo, casaco – dinheiro – pão, o tal Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria de Marx. O desenvolvimento histórico do capitalismo, por sua vez, traz consigo uma crescente importância social do dinheiro, associada à generalização do valor como forma de “riqueza abstracta”, cuja nova fórmula se traduz por Dinheiro – Mercadoria – Dinheiro (D-M-D). Nesta forma, a diferença entre o princípio e o fim do processo já não é qualitativo, como em M-D-M, mas apenas quantitativo (dinheiro – casaco – mais dinheiro), visto que não faz sentido algum entrar-se numa operação de troca cujo resultado final é necessariamente igual ao do ponto de partida; daí que D-M-D só pode ser entendido como D-M-D’, dinheiro – mercadoria – mais dinheiro. Assim, enquanto “mercadoria universal”, o dinheiro passa de simples meio a um fim em si mesmo, ganhando uma aparente vida própria que tudo submete ao seu poder. Entretanto, as qualidades sensíveis e concretas dos bens materiais são tornados secundários e meramente portadores da forma metafísica do ser-valor do qual o dinheiro é a “forma equivalente geral”. Onde o dinheiro vive, o conteúdo sensível do mundo desfalece.

Max Weber também descreveu fenómenos idênticos mas concentrando-se nas disposições subjectivas dos indivíduos concorrenciais na sociedade capitalista: “O ganho de dinheiro, e de cada vez mais dinheiro, com a mais estrita abstenção de todos os prazeres simples, tão completamente despido de todas as perspectivas eudemonistas ou mesmo hedonistas, é de tal modo considerado um objectivo em si que em comparação com a ‘felicidade’ ou o ‘proveito’ do indivíduo parece algo de completamente transcendente e puramente irracional. O ganho é considerado como objectivo da vida do homem, e já não como meio de satisfazer as suas necessidades materiais. Esta inversão dos factos ‘naturais’ se assim lhes quisermos chamar, sem sentido para uma sensibilidade simples, é manifestamente um leitmotiv do capitalismo, que se mantém alheio aos homens que não são movidos por ele” (Weber, 1913/1996: 38-9).

De facto, apenas a sociedade capitalista constituiu o dinheiro num fim em si mesmo, ao qual corresponde necessariamente o “trabalho como objectivo em si próprio” (Weber, 1913/1996: 45). O dinheiro está assim para a esfera da circulação o que o “trabalho abstracto” (Marx) está para a produção de mercadorias. Na sua relação dinâmica e contraditória, valor e trabalho abstracto, dinheiro e emprego, tornam evidentes as qualidades abstractas e irracionais da economia moderna e o poder destrutivo da trajectória histórica do “modo de produção baseado no valor” (Marx). O valor, a mercadoria e o trabalho abstracto, como formas sociais fundamentais da socialização capitalista, já estão hoje por todo o lado ao nível mundial, depois de realizados os seus processos históricos de colonização externa (mercado global, divisão internacional de trabalho, etc.) e colonização interna (ética do trabalho, razão empresarial, individualização concorrencial, etc.). Isto coincide necessariamente com a monetarização generalizada das relações sociais de uma forma e escala sem precedentes. Talvez por isso mesmo o jornal Dinheiro Vivo tenha como slogans “Tudo é economia” e “Há economia em tudo o que há”. O que dito em tom apologético no contexto explosivo da crise da sociedade do trabalho é também de um cinismo nojento.


Marx, Karl. 1867/ 1996. O Capital. Crítica da Economia Política, Vol. 1, Livro Primeiro. O Processo de Produção do Capital, Tomo 1. São Paulo: Editora Nova Cultural
Weber, Max. 1913/ 1996. A Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo. Lisboa: Presença

5 de julho de 2011

Contributos para a crítica do fetichismo do direito

"(…) a mercadoria na esfera económica tem o mesmo papel que a norma na esfera jurídica.

Como Marx nota num clarão fulgurante: «Cada qual tem o seu ofício por verdadeiro. Acerca da ligação do seu ofício com a realidade, têm tanto mais necessariamente ilusões quanto a natureza do ofício já de si o exibe. Em jurisprudência, em política, etc., essas relações tornam-se – ao nível da consciência – conceitos (…) O juiz, por exemplo, aplica o Código e eis porque ele considera a legislação como o verdadeiro motor activo. Respeito de cada um pela sua mercadoria.»

Com efeito, o fetichismo da mercadoria faz esquecer que a produção e a circulação dos objectos chamados mercadorias escondem na realidade relações sociais entre os indivíduos. No plano económico tudo aparece como colocado sob o signo da matéria e da riqueza: o económico seria o lugar da produção e da distribuição das riquezas. Estas seriam extraídas da natureza, para serem objecto de trocas, mas jamais aparecem realmente as relações entre os homens que permitem a organização desta produção e desta circulação. Tudo se passa num mundo totalmente coisificado.

É exactamente o contrário aquilo a que chega noção de norma. O fetichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o vocábulo único de direito, faz esquecer que a circulação, a troca e as relações entre pessoas são na realidade relações entre coisas, entre objectos, que são exactamente os mesmos da produção e da circulação capitalistas. E, de facto, no mundo do direito tudo parece passar-se entre pessoas: as que mandam e as que obedecem, as que possuem, as que trocam, as que dão, etc. Tudo parece ser objecto de decisão, de vontade, numa palavra, de Razão. Jamais aparece a densidade de relações que não são queridas, de coisas às quais os homens estariam ligados, de estruturas constrangedoras mas invisíveis.

Esta relação cruzada entre a forma valor e a forma jurídica (tal como a noção de norma e de pessoas exprimem) parece-me eminentemente significativa. O sistema jurídico da sociedade capitalista caracteriza-se por uma generalização da forma abstracta e da pessoa jurídicas. Essa generalização permite representar a unidade social de maneira ao mesmo tempo real e imaginária.

É necessário explicitar este ponto. As relações económicas e sociais capitalistas existem realmente segundo o tipo de organização que o capital implica mas, efectivamente, também existem as relações jurídicas que as exprimem e, veremos, as reproduzem. Neste sentido, as relações jurídicas não são pura imaginação: existem, têm uma materialidade indiscutível, tão real como as instituições do aparelho do Estado que lhe estão ligadas, tais como a justiça, a polícia, a administração. Mas ao mesmo tempo (…) as relações reais estão ocultas por todo um imaginário jurídico: o direito designa e desloca ao mesmo tempo os verdadeiros problemas. Este imaginário é o da pessoa sujeito de direito e o da norma regra imperativa. Porque estou convencido de que o homem é a fonte do direito, posso submeter-me ou resignar-me a obedecer a um sistema de normas de que ele é o autor. Mais precisamente, estas normas parecem-me lógicas e necessárias para organizar relações que eu não posso então perceber que estão já organizadas «noutro lado». Ao realizar-se, o direito não diz pois o que deve ser, diz já «aquilo que é». Mas esta realidade não pode surgir-me uma vez que, à semelhança da mercadoria, a norma me deixa crer que é fonte de valor, que ela é pois um imperativo primeiro e categórico. É aqui que entra a fetichização: atribuo à norma jurídica uma qualidade que parece intrínseca (a obrigatoriedade, a imperatividade), justamente quando esta qualidade pertence não à norma mas ao tipo de relação, de relação social real de que esta norma é expressão. Da mesma maneira que a mercadoria não cria valor mas o realiza no momento da troca, a norma jurídica não cria verdadeiramente a obrigação: realiza-a no momento das trocas sociais. Este fetichismo é tanto mais acentuado na sociedade capitalista quanto o sistema jurídico se tornou, entre todos os sistemas normativos, o que conquistou a hegemonia na função de «dizer» o «valor dos actos sociais». Veremos em seguida que, noutros modos de produção, é a religião ou a moral que ocupa esta função de maneira hegemónica. O direito não ocupa então senão um lugar secundário neste conjunto normativo; pelo contrário, desde os fins do século XVIII especialmente, a medida das relações sociais parece exprimir-se inteiramente no sistema jurídico. Tendo a moral e a religião sido relegadas para a categoria de tomada de posição individual, o direito parece ser o único sistema objectivo de qualificação das relações sociais; ele é portanto muito mais valorizado nesta função. É mesmo identificado com aquilo que realiza, quer dizer, o valor destas relações.

O que é específico do direito actual é a abstracção e a generalidade nas quais esta expressão das relações sociais é realizada. Esta forma jurídica está profundamente ligada ao modo de produção capitalista: em nenhum outro modo de produção da vida social o direito possui esta hegemonia e esta abstracção.”

Miaille, Michel (1976/2005); Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa (3ªed.), pp.94-6, itálico no original.

22 de junho de 2011

Entre o objectivismo e o subjectivismo ou um resumo da forma mental da classe média

“Filho: Pai, eu não quero ir para a escola.
Pai: Como assim?
F: Não quero. Quero ir contigo para o trabalho.
P: Não podes.
F: Porque não?
P: Porque tens escola.
F: Mas porquê?
P: Porque as crianças vão para a escola para aprenderem um trabalho que possam fazer quando forem grandes.
F: Mas eu quero ir contigo para o trabalho.
P: Isso não pode acontecer.
F: Mas porque é que não pode acontecer?
P: Porque as coisas são assim. Vês aquela senhora? Ela vai para o trabalho e a filha dela vai para a escola.
F: Porque é que os adultos vão sempre trabalhar?
P: Porque os adultos trabalham para pagar os brinquedos dos filhos.
F: Porque é que tens de pagar os brinquedos?
P: Porque as coisas têm um valor…
F: O que é um valor, pai?
P: Um valor é o que uma coisa custa.
F: E quem decide tudo isso?
P: O presidente deste país!”

Diálogo final entre pai e filho no filme “Ils se marièrent et eurent beaucoup d'enfants

6 de junho de 2011

O fetichismo do voto

A forma é tudo, o conteúdo é nada. Este é um dos traços essenciais de uma forma social fetichista, e foi exemplarmente ilustrado por Cavaco Silva na sua mensagem de apelo ao voto no dia da reflexão e do jogo Portugal-Noruega. Aqui é dito num dado momento aos eleitores que “se abdicarem de votar, não têm depois autoridade para criticar as políticas públicas”. Vale aqui, claro está, o princípio da forma, no qual é absolutamente indiferente o conteúdo da crítica. Não interessa a racionalidade do argumento (conteúdo), apenas se quem argumenta possui autoridade para argumentar (forma); autoridade que afinal tem de ser cedida, presumivelmente por quem votou. Saber se um indivíduo votou passa a ser condição para criticar ou poder entrar num debate e 59% dos portugueses podem agora com autoridade democrática mandar calar 41%. A forma vazia ganha aqui uma vida própria e uma autonomia verdadeiramente fetichista, o que associado a argumentos sobre a autoridade revela sem dúvida o potencial barbárico do nosso tempo. 

24 de maio de 2011

A utilidade de Keynes

"A construção de pirâmides, os terremotos e até as guerras podem contribuir para aumentar a riqueza, se a educação dos nossos estadistas nos princípios da economia clássica for um empecilho a uma solução melhor.


É curioso ver como o bom senso popular, em seus esforços para fugir a conclusões absurdas, pôde chegar a preferir as formas e gastos de empréstimos totalmente “inúteis” às que apenas o são parcialmente, e que, por não serem completamente desprovidas de utilidade, tendem a ser julgadas à luz de princípios estritamente “econômicos”. Por exemplo, o auxílio aos desempregados, financiado por empréstimo, é mais facilmente aceito que financiamento de melhorias a um custo inferior à taxa de juros corrente, e a solução de abrir buracos no chão, conhecida pelo nome de mineração de ouro, que não acrescenta nada à riqueza real do mundo e ainda supõe a desutilidade do trabalho, é a mais aceitável de todas".

Keynes, J.M. 1936/ 1996. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Editora Nova Cultural; p.144-5 

6 de maio de 2011

Prática teórica e prática prática

"... a possibilidade de mudança depende da capacidade de estar consciente da negatividade última, que é a negatividade localizada no estrato fundamental e não só no efémero fenómeno de superfície. Talvez as mudanças apenas possam ser feitas hoje através de pensamentos que não apontam directamente para a mudança. E é característico que sempre que alguém expressa seriamente pensamentos que não se dirigem à questão “Sim, mas o que é suposto que eu faça, aqui e agora?” – é sempre confrontado com um vazio de raiva (também pode ser um vazio silencioso) que não respeita quaisquer linhas de demarcação, políticas ou outras, simplesmente porque é insuportável não se entregar a uma prática qualquer. Isto é racionalizado, e muito bem racionalizado – é difícil dizer alguma coisa contra isso – pelo argumento: “Bem, é suposto o mundo ficar como está, com todas as suas horríveis possibilidades? Não se deveria fazer alguma coisa contra isso?”. Eu honro essa necessidade; seria o último a atrever-me a dizer algo contra ela. Eu apenas peço-vos que considerem, senhoras e senhores, se a compulsão para fazer alguma coisa aqui e agora, e a tendência para agrilhoar o pensamento que contem, não leva o pensamento a um impasse precisamente onde ele deveria ir mais longe, de forma a chegar ao local onde alguma coisa pode ser mudada. Quando uma vez disse – num sentido irónico e melancólico – que este é o tempo da teoria, eu quis dizer apenas isso. O feitiço que nos amarra hoje consiste, não em último lugar, no facto de ininterruptamente estimular as pessoas a tomarem a acção que elas acreditam que irá quebrar o feitiço; e que isso lhes impede a reflexão sobre elas mesmas e sobre as circunstâncias em que o feitiço pode realmente ser quebrado. Acredito que existe uma correlação precisa entre estes dois fenómenos: por um lado, a raiva que toma as pessoas perante – digamos? – a reflexão sem consequências, e, por outro lado, o momento de libertação contido em tal reflexão."

Adorno, T.W. (2001[1965]); Metaphysics. Concepts and Problems; Standford University Press. Lição 16, p.126, itálico no original.

2 de maio de 2011

O trabalho está na moda?

O homem moderno é um trabalhador. Trabalhar é o seu ideal. O vestuário do homem moderno é, desde o fim do século XVIII, essencialmente um fato de operário.

Johan Huizinga (1924); O declínio da Idade Média; Ed. Ulisseia

19 de abril de 2011

O trabalho como princípio masculino de cisão

"Para todos os homens, o desfecho do respectivo processo de socialização é a entrada no mundo do trabalho. O primeiro dia de trabalho é uma “iniciação” no reino da solidariedade secreta e conspirativa dos homens que trabalham. É através do trabalho que o rapaz passa a ser considerado um “homem”; ganha dinheiro, acede ao poder e à independência pessoal em relação à família. O dinheiro na algibeira simboliza a liberdade – a capacidade de “negociar” e de consumir e o direito ao respeito de que o pai aparentemente desfruta. Em termos mais gerais, através do trabalho, o homem expande-se para além dos seus horizontes limitados, tornando-se parte de uma organização económica mais ampla. Na qualidade de trabalhador, o rapaz entra no mercado da negociação e da troca. Torna-se parte de uma história masculina colectiva, feita de desafios e alianças, com as suas memórias de guerra, as suas depressões, lock-outs e greves.

Esta história e esta cultura masculinas do trabalho apoiam-se numa série de atitudes individuais. O direito por nascimento da condição do pai possui um magnetismo que ultrapassa a monotonia do trabalho assalariado quotidiano. De acordo como o já tentei descrever, esta integração intra-individual desenvolve-se no interior da família, onde o centro é representado pela figura da mãe. E no quadro da vida doméstica, o poder económico do pai encontra-se envolvido por toda uma mitologia do trabalho – noções relativas à auto-determinação e à “dignidade” de quem trabalha. É então que o rapaz aprende a linguagem do patriarcado – uma certa maneira de falar acerca do trabalho e da economia familiares – que se torna a base de “senso comum” das noções instituídas a propósito da solidariedade masculina. Assim, um homem falará, por exemplo, do “direito” ao trabalho, encontrando-se neste implícita a ideia de que o trabalho é, em si mesmo, uma necessidade do bem-estar psíquico individual.

A intensidade com que as definições de género penetram as atitudes frente ao “trabalho” não é o mais das vezes plenamente levada em conta. Porque não se trata simplesmente do facto de a sexualidade afectar a divisão do trabalho, distinguindo entre tarefas de homens e tarefas de mulheres. Nem se trata tão somente de um problema legal, susceptível de resolução através da igualdade de salários e de oportunidades. No que se refere a um homem, as definições da masculinidade vigentes afectam o modo através do qual ele vive a experiência do seu próprio trabalho, como uma obrigação e uma responsabilidade de duração vitalícia. Sob certos aspectos, o próprio trabalho só é tornado suportável através das diversas modalidades de compensação que se ligam a uma imagem da masculinidade: esforço físico, camaradagem, recompensa por meio da promoção. Quando o trabalho é insuportável, sucede com frequência ser a masculinidade a assumir (a identificação com a posse do salário, o “sustento da mulher e filhos”) o que faz com que o homem seja capaz de se dispor a trabalhar dia a dia.

Mas, embora se torne a base do conjunto da sua vida adulta, a atitude de um homem relativamente ao trabalho está muito longe de não levantar problemas de maior. É de grande importância darmo-nos conta desse facto, já que, dado o seu modo de organização em termos sociais, a experiência do trabalho representa uma ameaça constante à masculinidade. Aqui, voltamos a encontrar a estrutura central ambivalente da identidade masculina: embora seja o destino próprio de um homem, o trabalho é também uma fonte permanente e difusa de decepções para ele. Nas actuais sociedades capitalistas, com a sua divisão do trabalho extremamente aprofundada e a sua cisão sempre presente entre “trabalho” e “casa”, as expectativas masculinas não podem manter-se senão se integrarem numa unidade psicológica, que as condições de existência do homem que trabalha tornam ao mesmo tempo muito difícil de conquistar. De facto, no mundo do trabalho por si só, a identidade de género não se encontra completa, mas sofre uma gradual e inexorável cisão."

Tolson, Andrew (1977/1983); Os limites da masculinidade (pp.43-44); Assírio Alvim

13 de abril de 2011

A ideologia dos caçadores de vampiros

Acusar o capital financeiro e os bancos de serem "vampiros", como recorrentemente afirma a consciência popular, significa também reconhecer o dinheiro como o "sangue" da sociedade da mercadoria, a circulação monetária como a sua circulação sanguínea; no fundo, a sua fonte de vida social. Mas isso não passa de mera ideologia, partilhada por banqueiros e “caçadores de vampiros”, ambos confiantes na aparência. Afinal de contas, também o dinheiro necessita de ser alimentado a mercadorias.

12 de abril de 2011

O cosmonauta optimista


Os festejos dos últimos dias em torno da viagem de Yuri Gagarin explicam-se pelo contexto actual da pior crise económica da história, onde, ainda assim, os economistas estimam um crescimento mundial de 4,4% para 2011. Tal como eles, Gagarin era um optimista: depois de orbitar em torno do mundo da mercadoria e contemplar em simultâneo duas sociedades do trabalho numa luta concorrencial, ainda encontrou motivos para voltar.

11 de abril de 2011

O dilema político do mal-estar social

O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. (...)
Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no actual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão activa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O intelecto político é político exactamente na medida em que pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais. (...)
O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na omnipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, consequentemente, tanto mais é incapaz de descobrir a fonte dos males sociais.

6 de abril de 2011

A sociedade da mercadoria e o jogo da paulada ao cântaro

Existe um jogo tradicional português, derivado da cabra-cega e com múltiplas variantes noutras culturas, chamado de “Paulada ao Cântaro”. Este jogo é jogado em série normalmente de 5 ou 6 participantes de cada vez, rapazes e raparigas, rodeados pelo público. Suspensos por uma corda, colocam-se três cântaros: um com um prémio (normalmente coelhos, galinhas, pombos, chouriços) e dois com enganos (água, farinha, terra, farelos). Cada participante tem os olhos vendados, sendo volteados cinco vezes por um elemento do júri, sendo largado depois, com um pau nas mãos, para tentar quebrar o cântaro. O pau para quebrar o cântaro é igual para todos os participantes. Os participantes jogam todos ao mesmo tempo e com os olhos vendados, dando assim, em muitas circunstâncias, pauladas uns nos outros. É declarado vencedor o que conseguir partir o cântaro com o prémio em primeiro lugar.

Imaginemos agora que não há público nem júri. Imaginemos também que não há prémio, mas só enganos. Quando acabarão as pauladas?

Dificilmente encontraremos um jogo que mimetize de forma tão perfeita a existência humana na sociedade fetichista da mercadoria. 

4 de abril de 2011

O outro lado da moeda ainda é moeda

Seminário do Movimento Democrático de Mulheres
"... o movimento feminista não precisa - para dar prova de seu valor (moral e econômico) - tentar a redefinição da atividade feminina em termos de trabalho, já que o "trabalho" é de certo modo a "raiz de todo o mal". Isso não significa, por sua vez, que a actividade feminina e as atribuições patriarcais a ela vinculadas, da forma como se manifestam hoje, sejam de algum modo "melhores" e permitam deduzir modelos para o futuro, como acreditam muitas feministas. De fato, a "esfera feminina" e as qualidades imputadas às mulheres representam somente o outro lado da moeda do "trabalho abstrato no patriarcado ligado à forma-valor. Eis por que é tão errado referir-se positivamente à esfera feminina quanto ao "trabalho" em geral". 

31 de março de 2011

A fuga para a frente

"A teoria de Offe sobre o Estado culmina na rejeição das teses antinômicas de que o Estado seria um mero instrumento nas mãos da classe dominante ou de que seria o representante universal dos “interesses comuns de todos os membros de uma sociedade capitalista de classes” (1984: 123). A análise de suas determinações funcionais e de suas necessidades formais demonstra o seu vínculo estrutural com a acumulação capitalista. Os agentes que encarnam as funções políticas, os representantes das diversas classes sociais nas instituições legislativas, jurídicas e executivas, são mobilizados pela necessidade de cumprimento de uma política social no sentido descrito acima. Deste modo, os políticos não fazem política para as classes dominantes, no sentido tradicional, eles fazem política para a forma social estabelecida devido às necessidades de sua própria funcionalidade como uma esfera social particular, isto é, para a manutenção de sua própria capacidade de funcionamento como poder político. Realizar os prérequisitos da forma social capitalista não é necessariamente servir aos interesses da classe dominante e também pode não significar a representação do interesse geral das classes sociais. Como a estrutura social capitalista é atravessada por uma dinâmica contraditória, seu movimento pode gerar uma condição em que o cumprimento de suas determinações funcionais torne-se contrário aos interesses comuns.

Há assim, desde o princípio da história capitalista e de sua estrutura política, uma contradição entre os “interesses empíricos e as condições funcionais objetivas do capital” (Offe, 1984: 186) que é resolvida por uma espécie de “fuga para a frente” obtido pelo desenvolvimento económico, isto é, pela demonstração, a posteriori, das adequações das medidas tomadas para a regulação social, que não são de modo algum medidas tomadas conscientemente em conjunto, como um planejamento a priori − daí que também a adequação não seja necessariamente admitida de modo consciente, veja a cantilena de um Milton Friedman mesmo durante o boom keynesiano do pós-guerra. Essas contradições não deixam de transparecer sempre sob forma de divergências teóricas e ideológicas, sob a forma de conflitos diretos − a tradicional luta de classes − ou sob a forma de embates políticos − que é a tendência dominante, mas não única, nas democracias de massas do pós-guerra de institucionalização do conflito de classes.

Mas a emergência sensível da contradição estrutural demonstra que as condições de protelar as divergências de fundo não são dadas para todo o sempre, ainda que a  estrutura social faça do Estado a instituição privilegiada para tal prorrogação. A partir do fim da década de 1960 enxergamos sob a forma de “crise fiscal do Estado”, de esgotamento do keynesianismo e de questionamento da democracia política de massas, a incapacidade crescente do Estado de cumprir as funções que lhe são naturais. Mais grave que isso: o cumprimento de suas funções relativas ao enquadramento sob a forma mercadoria leva necessariamente a dificuldades e obstáculos que criam as condições para o seu próprio questionamento, pois começa a parecer que “a terapia do desenvolvimento pelo Estado da troca de mercadorias seja tão ou mais grave que a doença à qual se aplica” (Offe, 1984: 133)."