19 de abril de 2011

O trabalho como princípio masculino de cisão

"Para todos os homens, o desfecho do respectivo processo de socialização é a entrada no mundo do trabalho. O primeiro dia de trabalho é uma “iniciação” no reino da solidariedade secreta e conspirativa dos homens que trabalham. É através do trabalho que o rapaz passa a ser considerado um “homem”; ganha dinheiro, acede ao poder e à independência pessoal em relação à família. O dinheiro na algibeira simboliza a liberdade – a capacidade de “negociar” e de consumir e o direito ao respeito de que o pai aparentemente desfruta. Em termos mais gerais, através do trabalho, o homem expande-se para além dos seus horizontes limitados, tornando-se parte de uma organização económica mais ampla. Na qualidade de trabalhador, o rapaz entra no mercado da negociação e da troca. Torna-se parte de uma história masculina colectiva, feita de desafios e alianças, com as suas memórias de guerra, as suas depressões, lock-outs e greves.

Esta história e esta cultura masculinas do trabalho apoiam-se numa série de atitudes individuais. O direito por nascimento da condição do pai possui um magnetismo que ultrapassa a monotonia do trabalho assalariado quotidiano. De acordo como o já tentei descrever, esta integração intra-individual desenvolve-se no interior da família, onde o centro é representado pela figura da mãe. E no quadro da vida doméstica, o poder económico do pai encontra-se envolvido por toda uma mitologia do trabalho – noções relativas à auto-determinação e à “dignidade” de quem trabalha. É então que o rapaz aprende a linguagem do patriarcado – uma certa maneira de falar acerca do trabalho e da economia familiares – que se torna a base de “senso comum” das noções instituídas a propósito da solidariedade masculina. Assim, um homem falará, por exemplo, do “direito” ao trabalho, encontrando-se neste implícita a ideia de que o trabalho é, em si mesmo, uma necessidade do bem-estar psíquico individual.

A intensidade com que as definições de género penetram as atitudes frente ao “trabalho” não é o mais das vezes plenamente levada em conta. Porque não se trata simplesmente do facto de a sexualidade afectar a divisão do trabalho, distinguindo entre tarefas de homens e tarefas de mulheres. Nem se trata tão somente de um problema legal, susceptível de resolução através da igualdade de salários e de oportunidades. No que se refere a um homem, as definições da masculinidade vigentes afectam o modo através do qual ele vive a experiência do seu próprio trabalho, como uma obrigação e uma responsabilidade de duração vitalícia. Sob certos aspectos, o próprio trabalho só é tornado suportável através das diversas modalidades de compensação que se ligam a uma imagem da masculinidade: esforço físico, camaradagem, recompensa por meio da promoção. Quando o trabalho é insuportável, sucede com frequência ser a masculinidade a assumir (a identificação com a posse do salário, o “sustento da mulher e filhos”) o que faz com que o homem seja capaz de se dispor a trabalhar dia a dia.

Mas, embora se torne a base do conjunto da sua vida adulta, a atitude de um homem relativamente ao trabalho está muito longe de não levantar problemas de maior. É de grande importância darmo-nos conta desse facto, já que, dado o seu modo de organização em termos sociais, a experiência do trabalho representa uma ameaça constante à masculinidade. Aqui, voltamos a encontrar a estrutura central ambivalente da identidade masculina: embora seja o destino próprio de um homem, o trabalho é também uma fonte permanente e difusa de decepções para ele. Nas actuais sociedades capitalistas, com a sua divisão do trabalho extremamente aprofundada e a sua cisão sempre presente entre “trabalho” e “casa”, as expectativas masculinas não podem manter-se senão se integrarem numa unidade psicológica, que as condições de existência do homem que trabalha tornam ao mesmo tempo muito difícil de conquistar. De facto, no mundo do trabalho por si só, a identidade de género não se encontra completa, mas sofre uma gradual e inexorável cisão."

Tolson, Andrew (1977/1983); Os limites da masculinidade (pp.43-44); Assírio Alvim

13 de abril de 2011

A ideologia dos caçadores de vampiros

Acusar o capital financeiro e os bancos de serem "vampiros", como recorrentemente afirma a consciência popular, significa também reconhecer o dinheiro como o "sangue" da sociedade da mercadoria, a circulação monetária como a sua circulação sanguínea; no fundo, a sua fonte de vida social. Mas isso não passa de mera ideologia, partilhada por banqueiros e “caçadores de vampiros”, ambos confiantes na aparência. Afinal de contas, também o dinheiro necessita de ser alimentado a mercadorias.

12 de abril de 2011

O cosmonauta optimista


Os festejos dos últimos dias em torno da viagem de Yuri Gagarin explicam-se pelo contexto actual da pior crise económica da história, onde, ainda assim, os economistas estimam um crescimento mundial de 4,4% para 2011. Tal como eles, Gagarin era um optimista: depois de orbitar em torno do mundo da mercadoria e contemplar em simultâneo duas sociedades do trabalho numa luta concorrencial, ainda encontrou motivos para voltar.

11 de abril de 2011

O dilema político do mal-estar social

O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. (...)
Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no actual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão activa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O intelecto político é político exactamente na medida em que pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais. (...)
O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na omnipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, consequentemente, tanto mais é incapaz de descobrir a fonte dos males sociais.

6 de abril de 2011

A sociedade da mercadoria e o jogo da paulada ao cântaro

Existe um jogo tradicional português, derivado da cabra-cega e com múltiplas variantes noutras culturas, chamado de “Paulada ao Cântaro”. Este jogo é jogado em série normalmente de 5 ou 6 participantes de cada vez, rapazes e raparigas, rodeados pelo público. Suspensos por uma corda, colocam-se três cântaros: um com um prémio (normalmente coelhos, galinhas, pombos, chouriços) e dois com enganos (água, farinha, terra, farelos). Cada participante tem os olhos vendados, sendo volteados cinco vezes por um elemento do júri, sendo largado depois, com um pau nas mãos, para tentar quebrar o cântaro. O pau para quebrar o cântaro é igual para todos os participantes. Os participantes jogam todos ao mesmo tempo e com os olhos vendados, dando assim, em muitas circunstâncias, pauladas uns nos outros. É declarado vencedor o que conseguir partir o cântaro com o prémio em primeiro lugar.

Imaginemos agora que não há público nem júri. Imaginemos também que não há prémio, mas só enganos. Quando acabarão as pauladas?

Dificilmente encontraremos um jogo que mimetize de forma tão perfeita a existência humana na sociedade fetichista da mercadoria. 

4 de abril de 2011

O outro lado da moeda ainda é moeda

Seminário do Movimento Democrático de Mulheres
"... o movimento feminista não precisa - para dar prova de seu valor (moral e econômico) - tentar a redefinição da atividade feminina em termos de trabalho, já que o "trabalho" é de certo modo a "raiz de todo o mal". Isso não significa, por sua vez, que a actividade feminina e as atribuições patriarcais a ela vinculadas, da forma como se manifestam hoje, sejam de algum modo "melhores" e permitam deduzir modelos para o futuro, como acreditam muitas feministas. De fato, a "esfera feminina" e as qualidades imputadas às mulheres representam somente o outro lado da moeda do "trabalho abstrato no patriarcado ligado à forma-valor. Eis por que é tão errado referir-se positivamente à esfera feminina quanto ao "trabalho" em geral".