18 de julho de 2011

"Excesso por excesso"

O sistema de crédito, em que tudo se pode antecipar, inclusive a conquista do mundo, determina igualmente as acções que preparam o seu próprio final e o de toda a economia de mercado, até ao suicídio da ditadura (…)
Imiscuir-se na luta final da concorrência significava saltar para o abismo, e optou-se antes por empurrar os outros para o mesmo, na fé de assim se poder dissuadir (…)
Tranquila, imperturbável, segue a nau o seu rumo quando, de repente, se afunda a pique. Quando não há saída, ao impulso de aniquilação é totalmente indiferente o que nunca com clareza distinguiu: se se dirige contra outros ou contra o próprio sujeito.

Adorno, Th.W. (1951/2001); Minima Moralia; Lisboa: Edições 70; 67 - Excesso por excesso.

14 de julho de 2011

Dinheiro não-vivo

O jornalismo económico está claramente em alta. Não porque se tenha tornado mais rigoroso mas justamente pelo inverso: num quadro de falhanço total das previsões dos optimistas tagarelas com licenciatura, mestrado, doutoramento e Nobel em economia o descrédito é hoje total e, por isso mesmo, qualquer pessoa pode agora escrever um best seller sobre política monetária, gestão do orçamento familiar e as vantagens económicas em aproveitar as sobras do jantar de ontem.

Em Portugal, as oportunidades para o jornalismo económico cresceram entretanto exponencialmente com a crise da dívida pública, o auxílio financeiro internacional e o declínio do poder de compra da classe média. É neste contexto da maior crise económica mundial que surgiu no último mês um novo jornal económico digital com o paradoxal título de “Dinheiro Vivo”. Uma interpretação ligeira da escolha deste nome, e talvez aquela que realmente a motivou, poderá lembrar-nos o uso desta expressão popular na vida quotidiana; como quem diz “Nem fiado, nem cheque! O que eu quero é dinheiro vivo!”. Esta interpretação poderá evocar de certa maneira o actual quadro generalizado de incumprimento das dívidas diárias dos sujeitos monetários, e talvez por isso mesmo o jornal também afirme desejar cobrir os temas económicos “de forma próxima das pessoas”. Esta interpretação também poderá lembrar a diferença entre a suposta realidade do dinheiro e a sua mera promessa (fiado) ou representação (cheque). É claro que com isso também se escamoteia que o dinheiro é ele próprio uma representação fetichista. O que para um jornal económico deve ter pouco interesse.

Isto leva-nos à possibilidade de podermos fazer uma leitura mais essencial e que porventura também escapa às intenções da escolha do nome do jornal: no capitalismo-casino o dinheiro circula de tal modo que aparenta estar “vivo”. Esta metáfora, porém, é tudo menos nova. Nos seus primeiros escritos no início do século XIX, Hegel já havia concebido como princípio do dinheiro “a vida do que está morto movendo-se em si própria”. O dinheiro é definido, portanto, como um morto-vivo; o movimento autónomo do não-vivo.

Ao leitor atento torna-se óbvia a semelhança desta linguagem feita de oximoros com aquela usada por Marx para a sua definição de capital como processo de “valorização do valor” e da sua crítica do fetichismo da mercadoria e do trabalho abstracto. Marx mostra como, observado na mera esfera da circulação, o valor apresenta-se como um “sujeito automático”, um processo de “auto-valorização”, passando constantemente da forma mercadoria à forma dinheiro, “substância em processo e semovente, para a qual mercadorias e dinheiro são ambos meras formas”; o dinheiro é assim a “forma autónoma” do valor, “por meio da qual a sua identidade consigo mesmo é constatada. E essa forma ele só possui no dinheiro. Este constitui, por isso, o ponto de partida e o ponto final de todo processo de valorização” (Marx, 1867/1996: 274).

Nas sociedades pré-capitalistas o dinheiro desempenha um papel subordinado na troca de mercadorias, cujo consumo final eram o próprio objectivo da troca, por exemplo, casaco – dinheiro – pão, o tal Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria de Marx. O desenvolvimento histórico do capitalismo, por sua vez, traz consigo uma crescente importância social do dinheiro, associada à generalização do valor como forma de “riqueza abstracta”, cuja nova fórmula se traduz por Dinheiro – Mercadoria – Dinheiro (D-M-D). Nesta forma, a diferença entre o princípio e o fim do processo já não é qualitativo, como em M-D-M, mas apenas quantitativo (dinheiro – casaco – mais dinheiro), visto que não faz sentido algum entrar-se numa operação de troca cujo resultado final é necessariamente igual ao do ponto de partida; daí que D-M-D só pode ser entendido como D-M-D’, dinheiro – mercadoria – mais dinheiro. Assim, enquanto “mercadoria universal”, o dinheiro passa de simples meio a um fim em si mesmo, ganhando uma aparente vida própria que tudo submete ao seu poder. Entretanto, as qualidades sensíveis e concretas dos bens materiais são tornados secundários e meramente portadores da forma metafísica do ser-valor do qual o dinheiro é a “forma equivalente geral”. Onde o dinheiro vive, o conteúdo sensível do mundo desfalece.

Max Weber também descreveu fenómenos idênticos mas concentrando-se nas disposições subjectivas dos indivíduos concorrenciais na sociedade capitalista: “O ganho de dinheiro, e de cada vez mais dinheiro, com a mais estrita abstenção de todos os prazeres simples, tão completamente despido de todas as perspectivas eudemonistas ou mesmo hedonistas, é de tal modo considerado um objectivo em si que em comparação com a ‘felicidade’ ou o ‘proveito’ do indivíduo parece algo de completamente transcendente e puramente irracional. O ganho é considerado como objectivo da vida do homem, e já não como meio de satisfazer as suas necessidades materiais. Esta inversão dos factos ‘naturais’ se assim lhes quisermos chamar, sem sentido para uma sensibilidade simples, é manifestamente um leitmotiv do capitalismo, que se mantém alheio aos homens que não são movidos por ele” (Weber, 1913/1996: 38-9).

De facto, apenas a sociedade capitalista constituiu o dinheiro num fim em si mesmo, ao qual corresponde necessariamente o “trabalho como objectivo em si próprio” (Weber, 1913/1996: 45). O dinheiro está assim para a esfera da circulação o que o “trabalho abstracto” (Marx) está para a produção de mercadorias. Na sua relação dinâmica e contraditória, valor e trabalho abstracto, dinheiro e emprego, tornam evidentes as qualidades abstractas e irracionais da economia moderna e o poder destrutivo da trajectória histórica do “modo de produção baseado no valor” (Marx). O valor, a mercadoria e o trabalho abstracto, como formas sociais fundamentais da socialização capitalista, já estão hoje por todo o lado ao nível mundial, depois de realizados os seus processos históricos de colonização externa (mercado global, divisão internacional de trabalho, etc.) e colonização interna (ética do trabalho, razão empresarial, individualização concorrencial, etc.). Isto coincide necessariamente com a monetarização generalizada das relações sociais de uma forma e escala sem precedentes. Talvez por isso mesmo o jornal Dinheiro Vivo tenha como slogans “Tudo é economia” e “Há economia em tudo o que há”. O que dito em tom apologético no contexto explosivo da crise da sociedade do trabalho é também de um cinismo nojento.


Marx, Karl. 1867/ 1996. O Capital. Crítica da Economia Política, Vol. 1, Livro Primeiro. O Processo de Produção do Capital, Tomo 1. São Paulo: Editora Nova Cultural
Weber, Max. 1913/ 1996. A Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo. Lisboa: Presença

5 de julho de 2011

Contributos para a crítica do fetichismo do direito

"(…) a mercadoria na esfera económica tem o mesmo papel que a norma na esfera jurídica.

Como Marx nota num clarão fulgurante: «Cada qual tem o seu ofício por verdadeiro. Acerca da ligação do seu ofício com a realidade, têm tanto mais necessariamente ilusões quanto a natureza do ofício já de si o exibe. Em jurisprudência, em política, etc., essas relações tornam-se – ao nível da consciência – conceitos (…) O juiz, por exemplo, aplica o Código e eis porque ele considera a legislação como o verdadeiro motor activo. Respeito de cada um pela sua mercadoria.»

Com efeito, o fetichismo da mercadoria faz esquecer que a produção e a circulação dos objectos chamados mercadorias escondem na realidade relações sociais entre os indivíduos. No plano económico tudo aparece como colocado sob o signo da matéria e da riqueza: o económico seria o lugar da produção e da distribuição das riquezas. Estas seriam extraídas da natureza, para serem objecto de trocas, mas jamais aparecem realmente as relações entre os homens que permitem a organização desta produção e desta circulação. Tudo se passa num mundo totalmente coisificado.

É exactamente o contrário aquilo a que chega noção de norma. O fetichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o vocábulo único de direito, faz esquecer que a circulação, a troca e as relações entre pessoas são na realidade relações entre coisas, entre objectos, que são exactamente os mesmos da produção e da circulação capitalistas. E, de facto, no mundo do direito tudo parece passar-se entre pessoas: as que mandam e as que obedecem, as que possuem, as que trocam, as que dão, etc. Tudo parece ser objecto de decisão, de vontade, numa palavra, de Razão. Jamais aparece a densidade de relações que não são queridas, de coisas às quais os homens estariam ligados, de estruturas constrangedoras mas invisíveis.

Esta relação cruzada entre a forma valor e a forma jurídica (tal como a noção de norma e de pessoas exprimem) parece-me eminentemente significativa. O sistema jurídico da sociedade capitalista caracteriza-se por uma generalização da forma abstracta e da pessoa jurídicas. Essa generalização permite representar a unidade social de maneira ao mesmo tempo real e imaginária.

É necessário explicitar este ponto. As relações económicas e sociais capitalistas existem realmente segundo o tipo de organização que o capital implica mas, efectivamente, também existem as relações jurídicas que as exprimem e, veremos, as reproduzem. Neste sentido, as relações jurídicas não são pura imaginação: existem, têm uma materialidade indiscutível, tão real como as instituições do aparelho do Estado que lhe estão ligadas, tais como a justiça, a polícia, a administração. Mas ao mesmo tempo (…) as relações reais estão ocultas por todo um imaginário jurídico: o direito designa e desloca ao mesmo tempo os verdadeiros problemas. Este imaginário é o da pessoa sujeito de direito e o da norma regra imperativa. Porque estou convencido de que o homem é a fonte do direito, posso submeter-me ou resignar-me a obedecer a um sistema de normas de que ele é o autor. Mais precisamente, estas normas parecem-me lógicas e necessárias para organizar relações que eu não posso então perceber que estão já organizadas «noutro lado». Ao realizar-se, o direito não diz pois o que deve ser, diz já «aquilo que é». Mas esta realidade não pode surgir-me uma vez que, à semelhança da mercadoria, a norma me deixa crer que é fonte de valor, que ela é pois um imperativo primeiro e categórico. É aqui que entra a fetichização: atribuo à norma jurídica uma qualidade que parece intrínseca (a obrigatoriedade, a imperatividade), justamente quando esta qualidade pertence não à norma mas ao tipo de relação, de relação social real de que esta norma é expressão. Da mesma maneira que a mercadoria não cria valor mas o realiza no momento da troca, a norma jurídica não cria verdadeiramente a obrigação: realiza-a no momento das trocas sociais. Este fetichismo é tanto mais acentuado na sociedade capitalista quanto o sistema jurídico se tornou, entre todos os sistemas normativos, o que conquistou a hegemonia na função de «dizer» o «valor dos actos sociais». Veremos em seguida que, noutros modos de produção, é a religião ou a moral que ocupa esta função de maneira hegemónica. O direito não ocupa então senão um lugar secundário neste conjunto normativo; pelo contrário, desde os fins do século XVIII especialmente, a medida das relações sociais parece exprimir-se inteiramente no sistema jurídico. Tendo a moral e a religião sido relegadas para a categoria de tomada de posição individual, o direito parece ser o único sistema objectivo de qualificação das relações sociais; ele é portanto muito mais valorizado nesta função. É mesmo identificado com aquilo que realiza, quer dizer, o valor destas relações.

O que é específico do direito actual é a abstracção e a generalidade nas quais esta expressão das relações sociais é realizada. Esta forma jurídica está profundamente ligada ao modo de produção capitalista: em nenhum outro modo de produção da vida social o direito possui esta hegemonia e esta abstracção.”

Miaille, Michel (1976/2005); Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa (3ªed.), pp.94-6, itálico no original.