2 de dezembro de 2011

O Estado como pacemaker da valorização do valor



Foi o soberano que se apossou do ouro e da prata para fazer
deles os agentes universais de troca, neles imprimindo a sua
chancela, ou foram, ao contrário, esses agentes universais de
troca que se apoderaram do soberano, forçando-o a imprimir
 neles a sua chancela e a dar-lhes uma consagração política?

Karl Marx, A Miséria da Filosofia


No final de 2008 os pedidos de ajuda do sistema bancário fizeram as delícias da esquerda parlamentar e amante do estado. Os pacotes de resgate estatais desmentiam as ilusões do monetarismo e a supostamente salutar desregulação do neoliberalismo, fazendo emergir um neo-neo-keynesianismo na esquerda ao mesmo tempo que potenciavam a defesa do Estado na sua generalidade, ou seja, da própria forma estatal tout court, à qual cabe supostamente zelar pelo justo funcionamento da forma económica do sistema moderno produtor de mercadorias. Entretanto, ainda a esquerda tinha começado a lançar foguetes de estatismo e já os Estados viam os deficits das finanças públicas rebentarem-lhe em ambas as mãos.

Apesar das óbvias contradições é sistematicamente escamoteado que monetarismo e estatismo são duas faces da mesma moeda do sistema moderno produtor de mercadorias (quando um modelo falha o outro logo surge no seu lugar) e que ambos os modelos procuram ocultar que há décadas que a insuficiente valorização real do capital e o correspondente carácter estruturalmente deficitário da “economia real” são ocultados pela sistemática injecção de capital fictício, fruto de bolhas financeiras do mercado dos derivados. O problema vai mudando de sítio mas não só mantém-se como aumenta progressivamente.

Uma das barreiras ideológicas fundamentais que está na base desta opacidade do problema é o pressuposto metafísico de equilíbrio que historicamente tem acompanhado o sistema moderno produtor de mercadorias. No monetarismo, a ideologia do equilíbrio há muito que é alimentada pela teoria económica neoclássica (sobretudo desde Walras) que serve de base à ideologia neoliberal da harmonia interna e da “mão invisível” da “economia de mercado”; aqui o sistema está supostamente em equilíbrio objectivo e apenas pode ser subjectivamente perturbado por intromissões estatais. No estatismo, o problema expressa-se exactamente na forma inversa: reconhece-se de algum modo a existência objectiva de uma perturbação no sistema mas acredita-se atingir o equilíbrio justamente através de acções subjectivas estatais. Claro que aquilo que escapa a ambos é o carácter fetichista e dinâmico do sistema moderno produtor de mercadorias na sua globalidade e que não pode de modo algum ser captado através da tradicional oposição sujeito-objecto, o que Marx percebeu muito bem quando designou o capital como “sujeito automático”. Aliás, não é por acaso que no contexto actual um mesmo indivíduo pode expressar simultaneamente opiniões monetaristas e estatistas; aquilo que hoje importa acima de tudo é “conservar o valor já criado como valor” (Marx).

A incapacidade em reconhecer esta relação dinâmica, interna e objectiva da “valorização do valor” (Marx) tem levado à ininterrupta subjectivação e personificação das crises e à imediata e consensual definição pública de bodes expiatórios. Assim, o problema não é o movimento histórico inconsciente do sistema moderno produtor de mercadorias e sua forma de “riqueza abstracta” (Marx) e fetichista mas antes um qualquer malandro de fato que deturpou ou violou o sistema que de outro modo funcionaria muito bem. O problema não é portanto o capital em si mesmo mas apenas o capital monetário que rende juros, ou melhor, aqueles que o gerem gananciosamente (o que na maioria das vezes é identificado com os judeus). Esta forma ideológica e superficial de crítica em coro quase universal possibilitou mesmo um Óscar de Hollywood para melhor documentário ao filme “Inside Job” (2010).

O ex-deputado do PCP Octávio Teixeira deve ter gostado de “Inside Job”. Provavelmente aguarda ansiosamente a sequela europeia e gostaria que o Estado tivesse da próxima vez o papel principal. O seu artigo “Recapitalizar a banca sim, favorecer os bancos não” é assim um caso exemplar desta problemática. Aí é dito:


Tal como na generalidade da esquerda, fazer da necessidade uma virtude é aqui o mote. Octávio Teixeira não se limita a confirmar que o crédito é a base actual do sistema moderno produtor de mercadorias na sua globalidade, o que inclui também obviamente a forma estatal; ele faz a sua total apologia. Ele não se limita assim a afirmar que o sistema bancário é de facto "o coração que faz circular o sangue da economia" do sistema moderno de produtor de mercadorias; tal como os restantes amantes da forma estatal, ele parece sobretudo empenhado em garantir o ressurgimento do Estado como pacemaker do “sujeito automático” (Marx) do capital, ao mesmo tempo que escamoteia completamente que o próprio Estado há muito tempo que depende de créditos do sistema financeiro. E a forma como o faz é também sintomática da miséria conceptual da esquerda actual.

Da crescente importância social do capital financeiro não se pode retirar qualquer conclusão lógica (“Assim”) de que “o sistema bancário é um efectivo bem público”. Em primeiro lugar, o sistema moderno produtor de mercadorias é um sistema de produtores privados e o sistema bancário é composto por agregados de capitais monetários privados; se um estado ou qualquer entidade pública tutelar, gerir ou participar como accionista nesses agregados será para garantir que de um euro se continua a fazer dois euros no jogo do capitalismo de casino global, não alterando em nada a questão. Em segundo lugar, um bem público só pode ser um bem nacional, ou seja, com uma escala que o sistema financeiro há muito transcendeu. Não é por acaso que Teixeira prossegue com uma condição (“sendo-o”), à qual junta um dever do Estado, para no fim desmentir o sistema bancário como “efectivo bem público” (“a situação actual não é essa”). Portanto: o sistema bancário é “um efectivo bem público”, pode não sê-lo e hoje não o é; a confusão é total. Na realidade, o sistema bancário como “bem público” só existe na cabeça de Octávio Teixeira; não passa portanto do tradicional wishful thinking de esquerda.

Fazendo fé no que é “generalizadamente reconhecido”, também aqui se acredita que a crise do sistema moderno produtor de mercadorias resulta de meros “erros e irresponsabilidade dos banqueiros” que teimam em não reconhecer o sistema bancário como um “bem público” a salvaguardar para que os bancos possam mais uma vez “exercer a sua função de concessão de crédito à economia real”. A decadência da explicação acompanha aqui, passo a passo, a decadência do sistema.