16 de novembro de 2012

Da personificação à falsificação

A subjectivação e personificação da crise actual são evidentes em toda a esquerda e, nessa cruzada moralista por pretensos responsáveis, os banqueiros representam facilmente o malvado capital-financeiro que enriquece sem trabalhar e rouba o tão fofinho capital baseado no trabalho honrado. Para dar cobertura a este pensamento tacanho (e com a conotação anti-semita que se conhece) já se fizeram diversas leituras truncadas ou interpretações enviesadas da teoria de Marx; mas a falsificação sem peias é coisa mais recente.

O Movimento Alternativa Socialista (MAS) publicou um artigo intitulado “Esta dívida não é nossa!” que abre com uma suposta citação d’O Capital de Marx:
 “A acumulação de capital por via da dívida pública não significa senão (…) o desenvolvimento duma classe de credores do Estado que são autorizados a cobrar para si próprios uma parte do montante dos impostos (…). Estes factos demonstram que uma acumulação de dívidas passa a ser uma acumulação de capital”.
Em primeiro lugar, a citação é formalmente bizarra porque dá entender que cortou o final da primeira frase quando na realidade não o fez. Em segundo lugar, não só se omite parte da frase final como se inverte mesmo o sentido da própria metade citada, pondo Marx a dizer exactamente o contrário do que escreveu:
“A acumulação de capital da dívida pública é, como tem sido demonstrado, nada mais do que um aumento duma classe de credores do estado, que têm o direito de antecipar para eles certas somas sobre o volume de impostos. Nestes factos, onde até mesmo uma acumulação de dívidas pode parecer uma acumulação de capital, torna-se visível o grau de distorção atingido pelo sistema de crédito”. (4º parágrafo do capítulo “Capital-dinheiro e capital real” do Livro 3; ver original alemão e tradução inglesa).
Marx insistia ininterruptamente no desafio teórico de diferenciar criticamente a essência e a aparência das formas sociais, e esse princípio é também aqui evidente: a acumulação de dívidas pode parecer uma acumulação de capital, mas não é (os motivos porque não é não importam aqui). Ao ignorar-se tal diferenciação e seus desdobramentos tende-se a apresentar a aparência como a essência, tal como é típico no pensamento pós-moderno. E se nem mesmo tal banalização for suficiente para legitimar um programa eleitoral já há quem recorra de forma descarada à mais nojenta falsificação.

14 de outubro de 2012

Escravos, auto-proprietários da força de trabalho e seres humanos não-rentáveis

"O sistema moderno produtor de mercadorias tem como pressuposto a compra e venda de força de trabalho no mercado mundial, o que por sua vez pressupõe logicamente a “propriedade de si” mesmos dos sujeitos concorrenciais. O projecto abolicionista clássico nunca quis mais nada senão exigir o fim das relações de dependência e violência pessoal das formas tradicionais de escravatura para libertar os escravos para a violência impessoal da concorrência entre sujeitos auto-proprietários estruturalmente masculinos e brancos. Os “grilhões férreos” inamovíveis da escravatura tradicional deram assim lugar aos “grilhões invisíveis” da forma dinâmica fetichista da “riqueza abstracta” da valorização do valor. A racionalização das forças produtivas associada à actual revolução microelectrónica e a correspondente crise de desemprego estrutural mundial geram entretanto numa escala sem precedentes milhões de seres humanos auto-proprietários livres mas simplesmente não rentáveis, que se vêem por isso mesmo em inimagináveis condições de miséria e vulneráveis a novas formas de escravatura; os grilhões férreos regressam mas apenas porque os invisíveis se mantêm como pressuposto. No lugar de enfrentar criticamente este paradoxo da nova escravatura global, Bales prefere antes acenar cegamente com os pressupostos fetichistas do velho abolicionismo, como se não fossem eles justamente a raiz do problema. Reconhecer isso hoje é a primeira condição para dar início ao único projecto abolicionista verdadeiramente consequente: o da abolição socialmente consciente do sistema moderno produtor de mercadorias e sua forma do sujeito auto-proprietário masculino branco e concorrencial".


23 de maio de 2012

O trabalho abstracto como princípio masoquista masculino

"A maior fortuna de um homem é ser ele próprio o originador da sua felicidade, quando ele se sente a desfrutar do que obteve para si mesmo. Sem trabalho um homem nunca pode estar satisfeito. Quem desejar sentar-se em paz e libertar-se de todo o trabalho não sente nem desfruta a vida de modo algum; mas desde que seja activo ele sente que está vivo e apenas sendo diligente pode ele sentir-se satisfeito. Um homem precisa de ser diligente, uma mulher apenas necessita de ter uma ocupação. Ocupação sem um propósito é estar ocupado em ser ocioso, onde nos ocupamos apenas por diversão. Ocupação com um propósito em estar ocupado é negócio. Negócios sob dificuldades é trabalho. O trabalho é negócio imposto em nós, onde nós obrigamo-nos ou somos obrigados por outros. Nós obrigamo-nos se temos um fundamento motivante que supera todas as dificuldades do trabalho. Por outro lado, muitas coisas obrigam-nos a trabalhar, por exemplo o dever. Aquele que não é obrigado a seu trabalho por nada mas pode trabalhar como quiser, não pode ocupar e preencher o seu tempo com trabalho voluntário tão bem quanto se ele o tivesse de fazer por dever; porque o pensamento que surge é: você não tem que fazê-lo, ninguém o obriga. Por isso, é uma das nossas necessidades que devemos ter tarefas obrigatórias. Quando o trabalho é executado há um sentimento de satisfação que ninguém sente senão aquele que fez o trabalho. Existe igualmente mérito, aprovação e auto-elogio a ser concedido a si mesmo se apesar de todas as dificuldades se foi no entanto capaz de completar o trabalho. O homem deve disciplinar-se a si mesmo, mas a maior disciplina é acostumar-se a trabalhar. Isto é um incentivo à virtude. No trabalho não temos tempo para contemplar o vício, e ele traz realmente os benefícios que um outro tem de pensar maliciosamente como obter através do engano".


Kant, Immanuel. 1997 Lectures on Ethic: Cambridge University Press, pp. 164-5