O jornalismo económico está claramente em alta. Não porque se tenha tornado mais rigoroso mas justamente pelo inverso: num quadro de falhanço total das previsões dos optimistas tagarelas com licenciatura, mestrado, doutoramento e Nobel em economia o descrédito é hoje total e, por isso mesmo, qualquer pessoa pode agora escrever um best seller sobre política monetária, gestão do orçamento familiar e as vantagens económicas em aproveitar as sobras do jantar de ontem.
Em Portugal, as oportunidades para o jornalismo económico cresceram entretanto exponencialmente com a crise da dívida pública, o auxílio financeiro internacional e o declínio do poder de compra da classe média. É neste contexto da maior crise económica mundial que surgiu no último mês um novo jornal económico digital com o paradoxal título de “Dinheiro Vivo”. Uma interpretação ligeira da escolha deste nome, e talvez aquela que realmente a motivou, poderá lembrar-nos o uso desta expressão popular na vida quotidiana; como quem diz “Nem fiado, nem cheque! O que eu quero é dinheiro vivo!”. Esta interpretação poderá evocar de certa maneira o actual quadro generalizado de incumprimento das dívidas diárias dos sujeitos monetários, e talvez por isso mesmo o jornal também afirme desejar cobrir os temas económicos “de forma próxima das pessoas”. Esta interpretação também poderá lembrar a diferença entre a suposta realidade do dinheiro e a sua mera promessa (fiado) ou representação (cheque). É claro que com isso também se escamoteia que o dinheiro é ele próprio uma representação fetichista. O que para um jornal económico deve ter pouco interesse.
Isto leva-nos à possibilidade de podermos fazer uma leitura mais essencial e que porventura também escapa às intenções da escolha do nome do jornal: no capitalismo-casino o dinheiro circula de tal modo que aparenta estar “vivo”. Esta metáfora, porém, é tudo menos nova. Nos seus primeiros escritos no início do século XIX, Hegel já havia concebido como princípio do dinheiro “a vida do que está morto movendo-se em si própria”. O dinheiro é definido, portanto, como um morto-vivo; o movimento autónomo do não-vivo.
Ao leitor atento torna-se óbvia a semelhança desta linguagem feita de oximoros com aquela usada por Marx para a sua definição de capital como processo de “valorização do valor” e da sua crítica do fetichismo da mercadoria e do trabalho abstracto. Marx mostra como, observado na mera esfera da circulação, o valor apresenta-se como um “sujeito automático”, um processo de “auto-valorização”, passando constantemente da forma mercadoria à forma dinheiro, “substância em processo e semovente, para a qual mercadorias e dinheiro são ambos meras formas”; o dinheiro é assim a “forma autónoma” do valor, “por meio da qual a sua identidade consigo mesmo é constatada. E essa forma ele só possui no dinheiro. Este constitui, por isso, o ponto de partida e o ponto final de todo processo de valorização” (Marx, 1867/1996: 274).
Nas sociedades pré-capitalistas o dinheiro desempenha um papel subordinado na troca de mercadorias, cujo consumo final eram o próprio objectivo da troca, por exemplo, casaco – dinheiro – pão, o tal Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria de Marx. O desenvolvimento histórico do capitalismo, por sua vez, traz consigo uma crescente importância social do dinheiro, associada à generalização do valor como forma de “riqueza abstracta”, cuja nova fórmula se traduz por Dinheiro – Mercadoria – Dinheiro (D-M-D). Nesta forma, a diferença entre o princípio e o fim do processo já não é qualitativo, como em M-D-M, mas apenas quantitativo (dinheiro – casaco – mais dinheiro), visto que não faz sentido algum entrar-se numa operação de troca cujo resultado final é necessariamente igual ao do ponto de partida; daí que D-M-D só pode ser entendido como D-M-D’, dinheiro – mercadoria – mais dinheiro. Assim, enquanto “mercadoria universal”, o dinheiro passa de simples meio a um fim em si mesmo, ganhando uma aparente vida própria que tudo submete ao seu poder. Entretanto, as qualidades sensíveis e concretas dos bens materiais são tornados secundários e meramente portadores da forma metafísica do ser-valor do qual o dinheiro é a “forma equivalente geral”. Onde o dinheiro vive, o conteúdo sensível do mundo desfalece.
Max Weber também descreveu fenómenos idênticos mas concentrando-se nas disposições subjectivas dos indivíduos concorrenciais na sociedade capitalista: “O ganho de dinheiro, e de cada vez mais dinheiro, com a mais estrita abstenção de todos os prazeres simples, tão completamente despido de todas as perspectivas eudemonistas ou mesmo hedonistas, é de tal modo considerado um objectivo em si que em comparação com a ‘felicidade’ ou o ‘proveito’ do indivíduo parece algo de completamente transcendente e puramente irracional. O ganho é considerado como objectivo da vida do homem, e já não como meio de satisfazer as suas necessidades materiais. Esta inversão dos factos ‘naturais’ se assim lhes quisermos chamar, sem sentido para uma sensibilidade simples, é manifestamente um leitmotiv do capitalismo, que se mantém alheio aos homens que não são movidos por ele” (Weber, 1913/1996: 38-9).
De facto, apenas a sociedade capitalista constituiu o dinheiro num fim em si mesmo, ao qual corresponde necessariamente o “trabalho como objectivo em si próprio” (Weber, 1913/1996: 45). O dinheiro está assim para a esfera da circulação o que o “trabalho abstracto” (Marx) está para a produção de mercadorias. Na sua relação dinâmica e contraditória, valor e trabalho abstracto, dinheiro e emprego, tornam evidentes as qualidades abstractas e irracionais da economia moderna e o poder destrutivo da trajectória histórica do “modo de produção baseado no valor” (Marx). O valor, a mercadoria e o trabalho abstracto, como formas sociais fundamentais da socialização capitalista, já estão hoje por todo o lado ao nível mundial, depois de realizados os seus processos históricos de colonização externa (mercado global, divisão internacional de trabalho, etc.) e colonização interna (ética do trabalho, razão empresarial, individualização concorrencial, etc.). Isto coincide necessariamente com a monetarização generalizada das relações sociais de uma forma e escala sem precedentes. Talvez por isso mesmo o jornal Dinheiro Vivo tenha como slogans “Tudo é economia” e “Há economia em tudo o que há”. O que dito em tom apologético no contexto explosivo da crise da sociedade do trabalho é também de um cinismo nojento.
Marx, Karl. 1867/ 1996. O Capital. Crítica da Economia Política, Vol. 1, Livro Primeiro. O Processo de Produção do Capital, Tomo 1. São Paulo: Editora Nova Cultural
Weber, Max. 1913/ 1996. A Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo. Lisboa: Presença