9 de setembro de 2011

A educação para a barbárie



Será que um dia exploraremos de modo industrial as almas humanas?
Stanislaw Jerzy Lec


A barbárie também se ensina. E se existe um manual B-A-BA da nova barbárie o ministro da educação resumiu a primeira lição de forma exemplar. Mas com isso o mundo também não aprendeu nada. No entanto, se levarmos até ao fim o pensamento crítico dialéctico devemos acima de tudo agradecer ao ministro por condensar, a contragosto e de uma forma rara, a pedagogia do fetichismo do dinheiro.

Afinal de contas, já não precisamos de ler Marx para saber que as escolas são verdadeiras “fábricas de ensinar” e meras condições necessárias à “valorização do valor”. E também já não precisamos de ler Foucault para saber que uma significativa parte do tempo que lá passamos é de facto penosa. É o próprio ministro que nos lembra tudo isso, começando por perguntar, através de uma expressão linguística irreflectida mas plena de significado, se a educação “vale a pena”; porque o ensino é de facto cada vez mais penoso, e se o capitalismo nos ensinou alguma coisa é que sem sofrimento humano o valor não se valoriza. (O que não significa que todo o sofrimento humano “gere” valor).

E como o sofrimento não é uma mera ideia mas antes inseparável da matéria, o ministro sente-se na obrigação de justificar o seu materialismo tão maldito frente ao idealismo pedagógico, evocando uma velha dicotomia armadilhada. É que o ministro tem uma ideia: que o dinheiro é efectivamente um fenómeno material e não uma mera representação social fetichista. E o fetichismo é feito de inversões assim. Quando uma abstracção social governa realmente o mundo, quem tem razão? Os idealistas ou os materialistas?

Evocando a relação entre educação e dinheiro, o ministro verbaliza o tabu matricial do ensino na sociedade da mercadoria. E como bom ideólogo que é, fá-lo ocultando-o melhor. O dinheiro-mercadoria-mais dinheiro (D-M-D’) de Marx é, neste caso, dinheiro-ensino-mais dinheiro. Ora, o ministro só quer falar da relação entre os dois últimos momentos. E não só ignora propositadamente a primeira relação (dinheiro-ensino) como omite que a segunda já começou a rodar em falso num contexto de desemprego estrutural à escala global. É completamente escamoteada a quase completa falência dos sistemas públicos de ensino nos países ditos desenvolvidos; sistemas esses que são financiados não só através de impostos aos rendimentos dos sujeitos monetários mas também através de endividamento estatal. Esta situação é ainda mais evidente para o financiamento do ensino universitário que tem esboçado uma tendência para um aumento progressivo do custo dos diversos cursos e graus académicos. Neste contexto, é clara também a correspondente tendência para o endividamento pessoal para o acesso a graus de formação universitária. Um pouco por todo o mundo, mas sobretudo nos países anglo-saxónicos, tem disparado nos últimos anos o número de créditos pedidos por estudantes para o acesso a cursos e graus universitários. Ora, isto faz dos cursos universitários mercadorias financiadas a crédito (endividamento estatal) e consumidas também com créditos (pessoais), ou seja, crédito à segunda potência; não admira que se fale já da formação mundial de uma “bolha académica” de dimensão semelhante à bolha do crédito habitacional. Para o rebentar da bolha, o desemprego de mestres e doutorados endividados dará uma belíssima ajuda. Para estes, “ganhar mais dinheiro” não precisa de ser lembrado como princípio motivacional subjectivo mas é antes uma imposição imanente à sua condição de plenos sujeitos monetários. Não precisam, portanto, que o ministro lhes venha ensinar.

Mas o ministro preocupa-se acima de tudo com as novas gerações de sujeitos monetários concorrenciais. Assim, aquilo que numa primeira leitura generosa poderia ser interpretado como mero realismo cru sobre a objectividade fetichista da sociedade da mercadoria, revela-se muito mais do que isso: um inequívoco e insano apelo à eleição do fetiche monetário como princípio pedagógico. 

3 comentários:

Bernardo disse...

postagem genial! um dos melhores textos que li neste ano, tanto pelo conteúdo quanto pela forma - sobretudo em "É o próprio ministro que nos lembra tudo isso, começando por perguntar, através de uma expressão linguística irreflectida mas plena de significado, se a educação “vale a pena”; porque o ensino é de facto cada vez mais penoso, e se o capitalismo nos ensinou alguma coisa é que sem sofrimento humano o valor não se valoriza."
PARABÉNS!

setora disse...

Gostei.
Vou levar para a minha "escola"
Obrigada.

Futuro trabalhador tipo asiático disse...

muito bom...obrigado !!!