19 de setembro de 2011

Modos de ver da dissociação-valor



Poster das Guerrilla Girls (1989)


“Segundo costumes e convenções que, finalmente, têm vindo a ser postos em causa, mas que de modo algum foram ultrapassados, a aparência social da mulher é de espécie diferente da do homem (...) Uma presença masculina sugere sempre o que o homem pode fazer a nós ou para nós. A sua presença pode ser fabricada, no sentido em que pode querer passar por aquilo que não é. A pretensão, no entanto, é sempre a de aparentar um poder que se exerce sobre outros.


Por contraste, a presença de uma mulher exprime a sua atitude para consigo própria e define o que se lhe pode ou não pode fazer. A sua aparência manifesta-se nos gestos, na voz, nas opiniões, nas expressões, na roupa que usa, no ambiente que escolhe, no gosto – na verdade, não há nada que faça que não contribua para a sua aparência. A aparência, para uma mulher, é tão intrínseca à sua pessoa que os homens tendem a considerá-la uma emanação pessoal, uma espécie de calor, um aroma ou uma aura.


Nascer mulher é vir ao mundo dentro de um espaço definido e confinado, à guarda do homem. A aparência social das mulheres evoluiu como resultado do seu talento para viver, sob essa tutela em espaço tão limitado. Mas isto só foi possível dividindo em dois o ser individual da mulher. Uma mulher tem de tomar conta de si própria permanentemente. Está quase sempre acompanhada pela imagem que tem de si. Quando atravessa uma sala ou chora a morte de alguém, dificilmente pode evitar ver-se a si própria andando ou chorando. Desde a mais tenra infância, ela foi educada e persuadida a “ver o que faz”.


E, assim, acaba por considerar o vigilante e a vigiada que há dentro dela como os dois elementos constitutivos, embora diferentes, da sua identidade como mulher.


Tem de vigiar tudo o que é e tudo o que faz, pois a sua aparência, e, em primeiro lugar, a sua aparência perante os homens, é de importância decisiva para o que poderá ser geralmente considerado o seu êxito na vida. O seu próprio sentido daquilo que é, é suplantado pelo sentido de ser apreciada como tal por outrem.


O homem, por sua vez, vigia a mulher, antes de tomar conta dela. Por isso, o modo como uma mulher aparece a um homem pode determinar o modo como ele a tratará. Para obter algum controlo sobre esse processo, as mulheres têm de contê-lo e interiorizá-lo. A parte da mulher que constitui o vigilante trata a parte que constitui o vigiado de forma a dar aos outros o exemplo de como a sua totalidade gostaria de ser tratada. Este tratamento exemplar de si por si própria constitui a sua aparência. A aparência de qualquer mulher define o que é ou não é “permitido” na sua presença. Cada uma das suas acções – quaisquer que sejam os objectivos ou as motivações – é lida como a indicação de como ela gostaria de ser tratada. Se uma mulher atira um copo ao chão, é esse um exemplo de como trata as suas emoções de raiva e, portanto, de como deseja que essas emoções sejam tratadas pelos outros. Se um homem faz o mesmo, a sua acção é interpretada apenas como expressão da sua zanga. Se uma mulher diz uma boa graça, esse é um exemplo de como trata a humorista que existe em si e, portanto, o modo como ela, enquanto humorista, gostaria de ser tratada. Só os homens podem dizer uma graça pelo simples prazer de a dizer.


Poder-se-ia simplificar tudo isto dizendo: os homens agem, as mulheres aparecem. Os homens olham para as mulheres. As mulheres vêem-se a serem vistas. Isto determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres como também as relações das mulheres consigo próprias. O vigilante da mulher dentro de si própria é masculino: a vigiada, feminina. Assim, a mulher transforma-se a si própria em objecto – e muito especialmente num objecto visual: uma visão.

Berger, John (1996[1972]); Modos de ver; Edições 70, Lisboa; pp. 49-51, tradução corrigida, sublinhado meu.

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