29 de setembro de 2011

A educação para a barbárie: segunda lição.

Vi efeitos que todos os anos produzem em abundância novas causas.
Stanislaw Jerzy Lec


Em “A educação para a barbárie” já havia referido que a tese fetichista do ministro da educação, Nuno Crato (“estudar vale a pena para poder ganhar mais dinheiro”. “Eu acho que devemos dizer isso aos jovens”), há muito que roda em falso. Tanto o sistema público de ensino como uma crescente fatia de estudantes universitários dependem de capital sem substância; endividamento estatal, por um lado, e crédito pessoal, por outro. Não foi por isso preciso muito tempo até o ministro rever a sua tese. A promessa do governo anterior de premiar com 500€ os dois melhores alunos do ensino secundário de cada uma das escolas do sistema nacional de ensino antecipou, de certo modo, a tese de Nuno Crato; mas foi este a vir desmenti-la, cancelando os tão esperados cheques, escassas semanas depois do seu “apelo à eleição do fetiche monetário como princípio pedagógico”. Num quadro de colapso financeiro, este cancelamento tem claramente motivos objectivos que expõem Nuno Crato a contradições. Mas existem também motivos ideológicos na decisão. Enquanto o prémio do governo anterior se apoia no Estado simultaneamente como pedagogo da concorrência entre sujeitos monetários e recompensador dos vencedores, para Nuno Crato, o sujeito concorrencial do valor deve aprender a ser autónomo e a procurar recompensas por si próprio na esfera do mercado, porque “nesta altura de crise, andar a distribuir, a oferecer dinheiro às pessoas” não lhe “parece bem”.

Tanto o prémio do governo anterior como o apelo de Nuno Crato assentam na “pedagogia do fetichismo do dinheiro”; partilham portanto o sistema de referência negativo e socialmente destrutivo da sociedade da mercadoria. E entre o colapso do pólo estatista e a ilusão do pólo monetarista, a educação para a barbárie tem entretanto aqui a sua segunda lição.


19 de setembro de 2011

Modos de ver da dissociação-valor



Poster das Guerrilla Girls (1989)


“Segundo costumes e convenções que, finalmente, têm vindo a ser postos em causa, mas que de modo algum foram ultrapassados, a aparência social da mulher é de espécie diferente da do homem (...) Uma presença masculina sugere sempre o que o homem pode fazer a nós ou para nós. A sua presença pode ser fabricada, no sentido em que pode querer passar por aquilo que não é. A pretensão, no entanto, é sempre a de aparentar um poder que se exerce sobre outros.


Por contraste, a presença de uma mulher exprime a sua atitude para consigo própria e define o que se lhe pode ou não pode fazer. A sua aparência manifesta-se nos gestos, na voz, nas opiniões, nas expressões, na roupa que usa, no ambiente que escolhe, no gosto – na verdade, não há nada que faça que não contribua para a sua aparência. A aparência, para uma mulher, é tão intrínseca à sua pessoa que os homens tendem a considerá-la uma emanação pessoal, uma espécie de calor, um aroma ou uma aura.


Nascer mulher é vir ao mundo dentro de um espaço definido e confinado, à guarda do homem. A aparência social das mulheres evoluiu como resultado do seu talento para viver, sob essa tutela em espaço tão limitado. Mas isto só foi possível dividindo em dois o ser individual da mulher. Uma mulher tem de tomar conta de si própria permanentemente. Está quase sempre acompanhada pela imagem que tem de si. Quando atravessa uma sala ou chora a morte de alguém, dificilmente pode evitar ver-se a si própria andando ou chorando. Desde a mais tenra infância, ela foi educada e persuadida a “ver o que faz”.


E, assim, acaba por considerar o vigilante e a vigiada que há dentro dela como os dois elementos constitutivos, embora diferentes, da sua identidade como mulher.


Tem de vigiar tudo o que é e tudo o que faz, pois a sua aparência, e, em primeiro lugar, a sua aparência perante os homens, é de importância decisiva para o que poderá ser geralmente considerado o seu êxito na vida. O seu próprio sentido daquilo que é, é suplantado pelo sentido de ser apreciada como tal por outrem.


O homem, por sua vez, vigia a mulher, antes de tomar conta dela. Por isso, o modo como uma mulher aparece a um homem pode determinar o modo como ele a tratará. Para obter algum controlo sobre esse processo, as mulheres têm de contê-lo e interiorizá-lo. A parte da mulher que constitui o vigilante trata a parte que constitui o vigiado de forma a dar aos outros o exemplo de como a sua totalidade gostaria de ser tratada. Este tratamento exemplar de si por si própria constitui a sua aparência. A aparência de qualquer mulher define o que é ou não é “permitido” na sua presença. Cada uma das suas acções – quaisquer que sejam os objectivos ou as motivações – é lida como a indicação de como ela gostaria de ser tratada. Se uma mulher atira um copo ao chão, é esse um exemplo de como trata as suas emoções de raiva e, portanto, de como deseja que essas emoções sejam tratadas pelos outros. Se um homem faz o mesmo, a sua acção é interpretada apenas como expressão da sua zanga. Se uma mulher diz uma boa graça, esse é um exemplo de como trata a humorista que existe em si e, portanto, o modo como ela, enquanto humorista, gostaria de ser tratada. Só os homens podem dizer uma graça pelo simples prazer de a dizer.


Poder-se-ia simplificar tudo isto dizendo: os homens agem, as mulheres aparecem. Os homens olham para as mulheres. As mulheres vêem-se a serem vistas. Isto determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres como também as relações das mulheres consigo próprias. O vigilante da mulher dentro de si própria é masculino: a vigiada, feminina. Assim, a mulher transforma-se a si própria em objecto – e muito especialmente num objecto visual: uma visão.

Berger, John (1996[1972]); Modos de ver; Edições 70, Lisboa; pp. 49-51, tradução corrigida, sublinhado meu.

9 de setembro de 2011

A educação para a barbárie



Será que um dia exploraremos de modo industrial as almas humanas?
Stanislaw Jerzy Lec


A barbárie também se ensina. E se existe um manual B-A-BA da nova barbárie o ministro da educação resumiu a primeira lição de forma exemplar. Mas com isso o mundo também não aprendeu nada. No entanto, se levarmos até ao fim o pensamento crítico dialéctico devemos acima de tudo agradecer ao ministro por condensar, a contragosto e de uma forma rara, a pedagogia do fetichismo do dinheiro.

Afinal de contas, já não precisamos de ler Marx para saber que as escolas são verdadeiras “fábricas de ensinar” e meras condições necessárias à “valorização do valor”. E também já não precisamos de ler Foucault para saber que uma significativa parte do tempo que lá passamos é de facto penosa. É o próprio ministro que nos lembra tudo isso, começando por perguntar, através de uma expressão linguística irreflectida mas plena de significado, se a educação “vale a pena”; porque o ensino é de facto cada vez mais penoso, e se o capitalismo nos ensinou alguma coisa é que sem sofrimento humano o valor não se valoriza. (O que não significa que todo o sofrimento humano “gere” valor).

E como o sofrimento não é uma mera ideia mas antes inseparável da matéria, o ministro sente-se na obrigação de justificar o seu materialismo tão maldito frente ao idealismo pedagógico, evocando uma velha dicotomia armadilhada. É que o ministro tem uma ideia: que o dinheiro é efectivamente um fenómeno material e não uma mera representação social fetichista. E o fetichismo é feito de inversões assim. Quando uma abstracção social governa realmente o mundo, quem tem razão? Os idealistas ou os materialistas?

Evocando a relação entre educação e dinheiro, o ministro verbaliza o tabu matricial do ensino na sociedade da mercadoria. E como bom ideólogo que é, fá-lo ocultando-o melhor. O dinheiro-mercadoria-mais dinheiro (D-M-D’) de Marx é, neste caso, dinheiro-ensino-mais dinheiro. Ora, o ministro só quer falar da relação entre os dois últimos momentos. E não só ignora propositadamente a primeira relação (dinheiro-ensino) como omite que a segunda já começou a rodar em falso num contexto de desemprego estrutural à escala global. É completamente escamoteada a quase completa falência dos sistemas públicos de ensino nos países ditos desenvolvidos; sistemas esses que são financiados não só através de impostos aos rendimentos dos sujeitos monetários mas também através de endividamento estatal. Esta situação é ainda mais evidente para o financiamento do ensino universitário que tem esboçado uma tendência para um aumento progressivo do custo dos diversos cursos e graus académicos. Neste contexto, é clara também a correspondente tendência para o endividamento pessoal para o acesso a graus de formação universitária. Um pouco por todo o mundo, mas sobretudo nos países anglo-saxónicos, tem disparado nos últimos anos o número de créditos pedidos por estudantes para o acesso a cursos e graus universitários. Ora, isto faz dos cursos universitários mercadorias financiadas a crédito (endividamento estatal) e consumidas também com créditos (pessoais), ou seja, crédito à segunda potência; não admira que se fale já da formação mundial de uma “bolha académica” de dimensão semelhante à bolha do crédito habitacional. Para o rebentar da bolha, o desemprego de mestres e doutorados endividados dará uma belíssima ajuda. Para estes, “ganhar mais dinheiro” não precisa de ser lembrado como princípio motivacional subjectivo mas é antes uma imposição imanente à sua condição de plenos sujeitos monetários. Não precisam, portanto, que o ministro lhes venha ensinar.

Mas o ministro preocupa-se acima de tudo com as novas gerações de sujeitos monetários concorrenciais. Assim, aquilo que numa primeira leitura generosa poderia ser interpretado como mero realismo cru sobre a objectividade fetichista da sociedade da mercadoria, revela-se muito mais do que isso: um inequívoco e insano apelo à eleição do fetiche monetário como princípio pedagógico.