5 de julho de 2011

Contributos para a crítica do fetichismo do direito

"(…) a mercadoria na esfera económica tem o mesmo papel que a norma na esfera jurídica.

Como Marx nota num clarão fulgurante: «Cada qual tem o seu ofício por verdadeiro. Acerca da ligação do seu ofício com a realidade, têm tanto mais necessariamente ilusões quanto a natureza do ofício já de si o exibe. Em jurisprudência, em política, etc., essas relações tornam-se – ao nível da consciência – conceitos (…) O juiz, por exemplo, aplica o Código e eis porque ele considera a legislação como o verdadeiro motor activo. Respeito de cada um pela sua mercadoria.»

Com efeito, o fetichismo da mercadoria faz esquecer que a produção e a circulação dos objectos chamados mercadorias escondem na realidade relações sociais entre os indivíduos. No plano económico tudo aparece como colocado sob o signo da matéria e da riqueza: o económico seria o lugar da produção e da distribuição das riquezas. Estas seriam extraídas da natureza, para serem objecto de trocas, mas jamais aparecem realmente as relações entre os homens que permitem a organização desta produção e desta circulação. Tudo se passa num mundo totalmente coisificado.

É exactamente o contrário aquilo a que chega noção de norma. O fetichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o vocábulo único de direito, faz esquecer que a circulação, a troca e as relações entre pessoas são na realidade relações entre coisas, entre objectos, que são exactamente os mesmos da produção e da circulação capitalistas. E, de facto, no mundo do direito tudo parece passar-se entre pessoas: as que mandam e as que obedecem, as que possuem, as que trocam, as que dão, etc. Tudo parece ser objecto de decisão, de vontade, numa palavra, de Razão. Jamais aparece a densidade de relações que não são queridas, de coisas às quais os homens estariam ligados, de estruturas constrangedoras mas invisíveis.

Esta relação cruzada entre a forma valor e a forma jurídica (tal como a noção de norma e de pessoas exprimem) parece-me eminentemente significativa. O sistema jurídico da sociedade capitalista caracteriza-se por uma generalização da forma abstracta e da pessoa jurídicas. Essa generalização permite representar a unidade social de maneira ao mesmo tempo real e imaginária.

É necessário explicitar este ponto. As relações económicas e sociais capitalistas existem realmente segundo o tipo de organização que o capital implica mas, efectivamente, também existem as relações jurídicas que as exprimem e, veremos, as reproduzem. Neste sentido, as relações jurídicas não são pura imaginação: existem, têm uma materialidade indiscutível, tão real como as instituições do aparelho do Estado que lhe estão ligadas, tais como a justiça, a polícia, a administração. Mas ao mesmo tempo (…) as relações reais estão ocultas por todo um imaginário jurídico: o direito designa e desloca ao mesmo tempo os verdadeiros problemas. Este imaginário é o da pessoa sujeito de direito e o da norma regra imperativa. Porque estou convencido de que o homem é a fonte do direito, posso submeter-me ou resignar-me a obedecer a um sistema de normas de que ele é o autor. Mais precisamente, estas normas parecem-me lógicas e necessárias para organizar relações que eu não posso então perceber que estão já organizadas «noutro lado». Ao realizar-se, o direito não diz pois o que deve ser, diz já «aquilo que é». Mas esta realidade não pode surgir-me uma vez que, à semelhança da mercadoria, a norma me deixa crer que é fonte de valor, que ela é pois um imperativo primeiro e categórico. É aqui que entra a fetichização: atribuo à norma jurídica uma qualidade que parece intrínseca (a obrigatoriedade, a imperatividade), justamente quando esta qualidade pertence não à norma mas ao tipo de relação, de relação social real de que esta norma é expressão. Da mesma maneira que a mercadoria não cria valor mas o realiza no momento da troca, a norma jurídica não cria verdadeiramente a obrigação: realiza-a no momento das trocas sociais. Este fetichismo é tanto mais acentuado na sociedade capitalista quanto o sistema jurídico se tornou, entre todos os sistemas normativos, o que conquistou a hegemonia na função de «dizer» o «valor dos actos sociais». Veremos em seguida que, noutros modos de produção, é a religião ou a moral que ocupa esta função de maneira hegemónica. O direito não ocupa então senão um lugar secundário neste conjunto normativo; pelo contrário, desde os fins do século XVIII especialmente, a medida das relações sociais parece exprimir-se inteiramente no sistema jurídico. Tendo a moral e a religião sido relegadas para a categoria de tomada de posição individual, o direito parece ser o único sistema objectivo de qualificação das relações sociais; ele é portanto muito mais valorizado nesta função. É mesmo identificado com aquilo que realiza, quer dizer, o valor destas relações.

O que é específico do direito actual é a abstracção e a generalidade nas quais esta expressão das relações sociais é realizada. Esta forma jurídica está profundamente ligada ao modo de produção capitalista: em nenhum outro modo de produção da vida social o direito possui esta hegemonia e esta abstracção.”

Miaille, Michel (1976/2005); Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa (3ªed.), pp.94-6, itálico no original.

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