31 de março de 2011

A fuga para a frente

"A teoria de Offe sobre o Estado culmina na rejeição das teses antinômicas de que o Estado seria um mero instrumento nas mãos da classe dominante ou de que seria o representante universal dos “interesses comuns de todos os membros de uma sociedade capitalista de classes” (1984: 123). A análise de suas determinações funcionais e de suas necessidades formais demonstra o seu vínculo estrutural com a acumulação capitalista. Os agentes que encarnam as funções políticas, os representantes das diversas classes sociais nas instituições legislativas, jurídicas e executivas, são mobilizados pela necessidade de cumprimento de uma política social no sentido descrito acima. Deste modo, os políticos não fazem política para as classes dominantes, no sentido tradicional, eles fazem política para a forma social estabelecida devido às necessidades de sua própria funcionalidade como uma esfera social particular, isto é, para a manutenção de sua própria capacidade de funcionamento como poder político. Realizar os prérequisitos da forma social capitalista não é necessariamente servir aos interesses da classe dominante e também pode não significar a representação do interesse geral das classes sociais. Como a estrutura social capitalista é atravessada por uma dinâmica contraditória, seu movimento pode gerar uma condição em que o cumprimento de suas determinações funcionais torne-se contrário aos interesses comuns.

Há assim, desde o princípio da história capitalista e de sua estrutura política, uma contradição entre os “interesses empíricos e as condições funcionais objetivas do capital” (Offe, 1984: 186) que é resolvida por uma espécie de “fuga para a frente” obtido pelo desenvolvimento económico, isto é, pela demonstração, a posteriori, das adequações das medidas tomadas para a regulação social, que não são de modo algum medidas tomadas conscientemente em conjunto, como um planejamento a priori − daí que também a adequação não seja necessariamente admitida de modo consciente, veja a cantilena de um Milton Friedman mesmo durante o boom keynesiano do pós-guerra. Essas contradições não deixam de transparecer sempre sob forma de divergências teóricas e ideológicas, sob a forma de conflitos diretos − a tradicional luta de classes − ou sob a forma de embates políticos − que é a tendência dominante, mas não única, nas democracias de massas do pós-guerra de institucionalização do conflito de classes.

Mas a emergência sensível da contradição estrutural demonstra que as condições de protelar as divergências de fundo não são dadas para todo o sempre, ainda que a  estrutura social faça do Estado a instituição privilegiada para tal prorrogação. A partir do fim da década de 1960 enxergamos sob a forma de “crise fiscal do Estado”, de esgotamento do keynesianismo e de questionamento da democracia política de massas, a incapacidade crescente do Estado de cumprir as funções que lhe são naturais. Mais grave que isso: o cumprimento de suas funções relativas ao enquadramento sob a forma mercadoria leva necessariamente a dificuldades e obstáculos que criam as condições para o seu próprio questionamento, pois começa a parecer que “a terapia do desenvolvimento pelo Estado da troca de mercadorias seja tão ou mais grave que a doença à qual se aplica” (Offe, 1984: 133)."



18 de março de 2011

A floresta de braços




Manifestação da Geração à Rasca, 12 de Março de 2011, Lisboa
“Quanto mais se expandem a divisão do trabalho e o emprego da maquinaria, tanto mais se expande a concorrência entre os operários, tanto mais se contrai o seu salário. E, para além disto, a classe operária recruta-se ainda das camadas superiores da sociedade; afunda-se nela uma massa de pequenos industriais e rentiers que não têm nada de mais urgente a fazer do que erguer os braços a par dos braços dos operários. Deste modo, a floresta dos braços levantados ao ar e a pedir trabalho torna-se cada vez mais densa, e os próprios braços tornam-se cada vez mais magros”. 
(Marx, Trabalho Assalariado e Capital, 1849)

17 de março de 2011

“Ao trabalho, rapidamente e em força!”

"Eu sei muito bem que, de tempos a tempos, é preciso transformar 
mercados em campos de batalha, para que destes saiam de novo mercados" 
(Karl Kraus)

Que a guerra é a continuação da concorrência capitalista por outros meios já se sabia; mas há quem goste de mostrar como afinal é a concorrência capitalista que é a continuação da guerra. Mas será com os mesmos meios?

Para os que se entusiasmaram com o discurso de Cavaco fica aqui o que ele quis realmente dizer:


No lugar do “para Angola, rapidamente e em força!” de Salazar, vem o “Ao trabalho, rapidamente e em força!”

“A abnegação, não como bondade, mas como sensação de que a própria pessoa não tem importância, de que o próprio Eu pode, a qualquer momento, ser substituído por outro, tornou-se um abrangente fenómeno de massas, bem capaz de levar o indivíduo a arriscar a própria vida, mas que não tinha a mínima semelhança com o que costumamos entender por idealismo. Essa gente… já tinha perdido muito mais que a cadeia da miséria e da exploração quando o interesse por si própria lhe foi arrancado da mão… Perante esta negação do mundo, os monges cristãos eram apegados ao mundo, quase que transbordavam de interesse por assuntos terrenos. Desde o início do século XIX, muitos historiadores e homens de estado importantes vaticinaram a aproximação de uma época de massas… Todas essas profecias se realizaram agora de facto, mas, como costuma acontecer com as profecias na maior parte dos casos, de um modo que afinal não tinha sido previsto pelos profetas. O que eles não previram ou, mesmo prevendo, não avaliaram acertadamente no que diz respeito às suas consequências verdadeiras, foi este fenómeno de uma perda radical de si mesmo, essa indiferença cínica ou aborrecida com que as massas encararam a sua própria morte ou outras catástrofes pessoais, e a sua surpreendente predisposição para aderir às ideias mais abstractas, essa predilecção apaixonada por organizar a sua vida segundo conceitos destituídos de qualquer sentido, se tal lhes permitisse fugir ao quotidiano e ao bom senso, que desprezavam acima de tudo… A falta de uma verdadeira capacidade de discernimento anda aqui de mãos dadas com a estranha abnegação moderna, e ambas encontram uma correspondência por demais óbvia na atracção das massas por um mundo fictício…” (Hannah Arendt 1986/1951)

Muito cavaco por nada!

Começa no Estado de Emergência.  Depois vem que


“… é essencial traçar um caminho que permita o reforço da nossa competitividade e o aumento da produtividade do trabalho e do capital. A perda de competitividade da economia portuguesa é talvez o sintoma mais grave das nossas fragilidades.Neste contexto, é crucial a realização de reformas estruturais destinadas a diminuir o peso da despesa pública, a reduzir a presença excessiva do Estado na economia e a melhorar o desempenho e a eficácia da administração pública.”
Para acabar com esta pérola:
“A pessoa humana tem de estar no centro da acção política. Os Portugueses não são uma estatística abstracta. Os Portugueses são pessoas que querem trabalhar…”

Embaraços de Bernard Arcand, um antropólogo da sociedade do trabalho investigando sociedades sem trabalho

“Uma vez tentei fazer uma coisa muito estúpida: tentei calcular as horas de trabalho numa sociedade de caça e coleta de alimentos. Então levei meu caderno de notas e fui observá-los, vi pessoas saírem para pescar e voltarem quatro horas mais tarde. Anotei: são necessárias quatro horas de trabalho para obter dois peixes. Mas depois de um tempo comecei a notar que as pessoas que saíam para pescar eram marido e mulher e voltavam quatro horas mais tarde com os cabelos despenteados e com um ar de felicidade no rosto. Obviamente, eles pescavam os dois peixes em quinze minutos e gastavam o resto do tempo ocupados com outras coisas.”

“E os desempregados?”

Apesar de não passar de um materialista primata, em certos momentos Engels até acertou; tanto que parece antecipar muitos acontecimentos: os da Tunísia e Egipto, mas não só…
O ciclo decenal de estagnação, prosperidade, superprodução e crises, sempre recorrentes entre 1825 e 1867, parece mesmo ter chegado ao fim, mas apenas para nos lançar no lamaçal do desalento de uma depressão permanente e crônica. O suspiro por um período de prosperidade não virá; tão frequentemente como nós parecemos perceber seus sintomas, assim, muitas vezes eles desaparecem no ar novamente. Enquanto isso, cada inverno traz de novo a grande pergunta “E os desempregados?”; mas, enquanto o número de desempregados continua a crescer de ano para ano, não há ninguém para responder a essa pergunta, e quase podemos calcular o momento em que os desempregados, perdendo a paciência, tomarão o seu destino com as próprias mãos.

Engels (1886); Prefácio à Edição Inglesa de "O Capital"