16 de outubro de 2011

Os protestos de Zizek e o espírito santo do capitalismo

Paul Lafargue escreveu “A Religião do Capital” mas antes dele já o seu sogro, Karl Marx, havia usado metáforas religiosas por diversas vezes para ilustrar o carácter absurdo do sistema moderno produtor de mercadorias. Porventura, a metáfora mais expressiva e conhecida encontra-se na analogia de Marx do fetichismo da mercadoria com a "região nevoenta do mundo religioso", onde "os produtos da cabeça humana parecem figuras autónomas, dotadas de vida própria". Esta analogia do "carácter místico da mercadoria" com o mundo religioso é utilizada obviamente de forma negativa e determinada, apontando para a irracionalidade da totalidade do contexto de reprodução social.

Recentemente a esquerda tem expressado uma tendência inversa: procurar no "mundo religioso" justamente pontos de apoio afirmativo para a crítica social parcial. Assim, depois de Hardt e Negri recorrerem no final de “Empire” a S. Francisco de Assis e à sua “alegria do Ser”, e Badiou falar-nos de S. Paulo como modelo para um “novo Lenine”, chegou a vez do “padre” Slavoj Zizek afirmar na "missa" que realizou na acampada de Wall Street que esta acção é uma manifestação do "Espírito Santo" e que os corretores da Bolsa "são os pagãos que adoram ídolos blasfemos". Não admira que os padres reais afirmem que "a crise é uma oportunidade para a igreja".

Embora Zizek afirme que “o problema é o sistema” (o que também é apenas uma forma tosca e positivista de aproximação ao fetichismo da mercadoria), nem lhe passa pela cabeça usar o “espírito santo” como analogia religiosa negativa do capital enquanto “sujeito automático” (Marx) ou da mercadoria como "forma fantasmagórica" (Marx) do valor e do trabalho abstracto; ou seja, o Espírito Santo como sistema religioso que integra simultaneamente corretores bolsistas e acampados. Zizek vai justamente na direcção oposta: define positivamente o Espírito Santo (e a acampada de Wall Street) como “uma comunidade igualitária de crentes que estão ligados pelo amor um pelo outro, e que só têm a sua própria liberdade e responsabilidade para este amor”. Mas crentes em quê? Zizek não nos diz. No entanto, se lermos crentes “no capital” e amor “ao capital”, obtemos uma metáfora negativa perfeita da expressão do sistema moderno produtor de mercadorias na esfera igualitária do mercado, esfera onde efectivamente começa e acaba toda a “liberdade e responsabilidade” na sociedade capitalista.

Como Marx mostrou, a célebre igualdade dos direitos humanos não passa da expressão ideológica da igualdade fetichista dos sujeitos monetários perante o mercado, mas onde a qualquer momento a violência e dominação podem rebentar. Não é assim por acaso que, apesar de toda a conversa fiada sobre igualdade e amor, Zizek classifica os corretores de “pagãos”, esquecendo o uso barbárico desta classificação social ao longo da história (e com uma estratégia discursiva perigosamente semelhante ao uso do termo “infiéis” pelos terroristas islâmicos), e simultaneamente pergunta sem qualquer pudor: “que tipo de novos líderes queremos?”. Involuntariamente, entre o misticismo do espírito santo do capital e questões de liderança política, Zizek aproxima-se da teologia política de Carl Schmitt. Talvez por isso mesmo Zizek tenha hoje tantos apóstolos.


Missa de Zizek e coro de apóstolos

Capa da revista Notícias Magazine (16/10/2011)




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