6 de novembro de 2011

O bárbaro como sujeito?

A barbárie é imanente ao sistema moderno produtor de mercadorias. Aqueles que estão dispostos a admiti-lo sem criticar radicalmente o seu carácter fetichista podem entretanto sempre evocar descansadamente que existem maus bárbaros e bons bárbaros, uma má barbárie e uma boa barbárie. Ou seja: no lugar de uma crítica radical da forma bárbara do “sujeito automático” (Marx) vem antes umas meras achegas ao seu conteúdo. Essa é certamente a opção de António Guerreiro no texto “Os bárbaros que não chegam”; título messiânico que deve tanto a Walter Benjamin quanto a tese principal da sua argumentação, baseada no ensaio “Experiência e pobreza” de 1933. Guerreiro afirma:


É certo que “todos aqueles que criticam o sistema em que vivemos, hoje à beira do colapso, parecem querer salvá-lo; mas Guerreiro nem repara que um “salto” que permita “pôr a questão de um recomeço” só pode ser obrigatoriamente um salto para trás, a partir do qual o sistema moderno fetichista poderia então recomeçar pintado de novas cores. Não é assim por acaso que o núcleo desta argumentação de uma “barbárie positiva” já se encontrava em Lenine em 1918, quando este “bom bárbaro” andava às voltas com a sua imposição politicista do fetichismo da “valorização do valor” (Marx) e a correspondente ditadura de modernização soviética e de capitalismo de estado:


Desconhecemos se Benjamin tinha conhecimento da afirmação de Lenine; mas estas semelhanças não podem ser descartadas como meras coincidências e muito menos reproduzidas hoje acriticamente sem qualquer reflexão histórica, como faz António Guerreiro. De facto, tanto Benjamin como Lenine escrevem num contexto histórico de ascensão e modernização do sistema moderno produtor de mercadorias: a ascensão do sistema barbárico é vista como uma necessidade histórica inevitável, mas ainda pode ser boa ou má em função do respectivo sujeito histórico, o bom bárbaro proletário oprimido ou o mau bárbaro capitalista opressor. Assim, Benjamin poderia muito bem estar a descrever a barbárie leninista quando diz:


Por outro lado, como não ver também neste texto de Benjamin o carácter fetichista do auto-movimento histórico da “valorização do valor”, integrando simultaneamente proletários e capitalistas; movimento que “impele” o sujeito monetário e concorrencial “a partir para frente”, “a começar de novo”, “sem olhar nem para a direita nem para a esquerda”, movimento feito de “homens implacáveis que operaram a partir de uma tabula rasa”. Visto deste modo, tabula rasa não pode ser visto como o motivo subjectivo de oposição ao sistema moderno produtor de mercadorias mas reconhecido justamente como o seu inverso: como lógica fetichista objectiva arrasadora de todos os conteúdos sociais e culturais sensíveis, forçando-os à forma mercadoria, e precisando para tal de “homens implacáveis”, sujeitos masculinos bárbaros da imposição e “legislação sanguinária” (Marx). Ou seja: o “progressivismo supra-ideológico” criticado por Guerreiro e o sujeito de tabula rasa que defende são uma e a mesma coisa: o “sujeito automático” do capital.

Não por acaso, Guerreiro passa completamente ao lado da evolução do conceito de barbárie em Benjamin, que certamente não desconhece. O ensaio “Experiência e pobreza” é de 1933; sete anos depois e já a meio da barbárie hitleriana, Benjamin é muito menos optimista na referência à barbárie nas suas “Teses sobre o conceito da história”:


Apesar das semelhanças com o primeiro ensaio no tom messiânico, aqui a relação entre cultura e barbárie não é pensada como boa e má barbárie mas justamente na sua reciprocidade histórica negativa, cujo reconhecimento possibilita um novo olhar sobre um passado de sofrimento humano onde “o amontoado de ruínas cresce até ao céu”. O que importa fundamentalmente considerar é o carácter necessariamente barbárico de toda a cultura baseada em formas sociais fetichistas, formas de consciência social inconscientemente constituídas, mas sem que todos os produtos culturais possam ser resumidos a isso; trata-se portanto da relação incoerente entre forma (social) e conteúdo (material). Esta ideia de Benjamin foi justamente aprofundada criticamente por Robert Kurz numa perspectiva da história das relações fetichistas (Cf. Ontologia Negativa e Tabula Rasa).

A fase histórica de ascensão e imposição do sistema moderno produtor de mercadorias acabou; aproximando-se do seu limite interno absoluto o sistema fetichista está antes “hoje à beira do colapso”, como o próprio António Guerreiro afirma. Assim, a correspondente dialéctica histórica entre bons bárbaros e maus bárbaros deixa de ter qualquer legitimidade ideológica; ambos devem ser reconhecidos como impositores históricos do sistema moderno produtor de mercadorias. Evocar agora romanticamente e de forma anacrónica as teses de Benjamin da “barbárie positiva”, redigidas antes de Auschwitz e do Gulag, não deve ser visto como um ponto de partida crítico do sistema moderno produtor de mercadorias mas antes como um sintoma de total desorientação conceptual na vertigem do seu colapso, evidente na leviana tentativa de apresentar o bárbaro bonzinho como sujeito fetichista a ser ansiosamente aguardado.

2 comentários:

musicker disse...

Bom, eu já tinha deixado um comentário, mas por uma qualquer razão informática que desconheço, o dito cujo perdeu-se no éter dos bits e bytes da internet...
Mas era qualquer coisa como:
Quem se arrisca a trazer à colação aquilo que não domina, ou quer utilizar parcialmente, arrisca-se a ser barbaramente exposto.
Obrigado por trazeres a público esta tua reflexão.
Pertinente como sempre.
E já que se fala do «sistema moderno produtor de mercadorias», veja-se esta pérola actualíssima:
http://www.youtube.com/visitportugal
No plano da idea, até parece bonito, mas esta simplicidade, na realidade, é um pouco mais complexa...
abraços,
NM

Anónimo disse...

Muito bem.
Pedro.