Foi o soberano que se apossou do ouro e da prata
para fazer
deles os agentes universais de troca, neles
imprimindo a sua
chancela, ou foram, ao contrário, esses agentes
universais de
troca que se apoderaram do soberano, forçando-o
a imprimir
neles a
sua chancela e a dar-lhes uma consagração política?
Karl Marx, A Miséria da Filosofia
No final de 2008 os pedidos de ajuda do sistema bancário
fizeram as delícias da esquerda parlamentar e amante do estado. Os pacotes de
resgate estatais desmentiam as ilusões do monetarismo e a supostamente
salutar desregulação do neoliberalismo, fazendo emergir um
neo-neo-keynesianismo na esquerda ao mesmo tempo que potenciavam a defesa do
Estado na sua generalidade, ou seja, da própria forma estatal tout court, à qual cabe supostamente
zelar pelo justo funcionamento da forma económica do sistema moderno produtor
de mercadorias. Entretanto, ainda a esquerda tinha começado a lançar foguetes
de estatismo e já os Estados viam os deficits das finanças públicas
rebentarem-lhe em ambas as mãos.
Apesar das óbvias contradições é sistematicamente escamoteado
que monetarismo e estatismo são duas faces da mesma moeda do sistema moderno
produtor de mercadorias (quando um modelo falha o outro logo surge no seu lugar)
e que ambos os modelos procuram ocultar que há décadas que a insuficiente
valorização real do capital e o correspondente carácter estruturalmente deficitário
da “economia real” são ocultados pela sistemática injecção de capital fictício,
fruto de bolhas financeiras do mercado dos derivados. O problema vai mudando de
sítio mas não só mantém-se como aumenta progressivamente.
Uma das barreiras ideológicas fundamentais que está na
base desta opacidade do problema é o pressuposto metafísico de equilíbrio que
historicamente tem acompanhado o sistema moderno produtor de mercadorias. No
monetarismo, a ideologia do equilíbrio há muito que é alimentada pela teoria
económica neoclássica (sobretudo desde Walras) que serve de base à ideologia
neoliberal da harmonia interna e da “mão invisível” da “economia de mercado”;
aqui o sistema está supostamente em equilíbrio objectivo e apenas pode ser
subjectivamente perturbado por intromissões estatais. No estatismo, o problema
expressa-se exactamente na forma inversa: reconhece-se de algum modo a
existência objectiva de uma perturbação no sistema mas acredita-se atingir o
equilíbrio justamente através de acções subjectivas estatais. Claro que aquilo
que escapa a ambos é o carácter fetichista
e dinâmico do sistema moderno
produtor de mercadorias na sua globalidade e que não pode de modo algum ser
captado através da tradicional oposição sujeito-objecto, o que Marx percebeu
muito bem quando designou o capital como “sujeito automático”. Aliás, não é por
acaso que no contexto actual um mesmo indivíduo pode expressar simultaneamente
opiniões monetaristas e estatistas; aquilo que hoje importa acima de tudo é
“conservar o valor já criado como valor” (Marx).
A incapacidade em reconhecer esta relação dinâmica,
interna e objectiva da “valorização do valor” (Marx) tem levado à ininterrupta subjectivação e personificação das crises e à imediata e consensual definição
pública de bodes expiatórios. Assim, o problema não é o movimento histórico
inconsciente do sistema moderno produtor de mercadorias e sua forma de “riqueza
abstracta” (Marx) e fetichista mas antes um qualquer malandro de fato que deturpou
ou violou o sistema que de outro modo funcionaria muito bem. O problema não é
portanto o capital em si mesmo mas apenas o capital monetário que rende juros,
ou melhor, aqueles que o gerem gananciosamente (o que na maioria das vezes é
identificado com os judeus). Esta forma ideológica e superficial de crítica em
coro quase universal possibilitou mesmo um Óscar de Hollywood para melhor
documentário ao filme “Inside Job” (2010).
O ex-deputado do PCP Octávio Teixeira deve ter gostado de
“Inside Job”. Provavelmente aguarda ansiosamente a sequela europeia e gostaria
que o Estado tivesse da próxima vez o papel principal. O seu artigo
“Recapitalizar a banca sim, favorecer os bancos não” é assim um caso exemplar
desta problemática. Aí é dito:
"O sistema bancário é "o coração que faz circular o sangue da economia". Assim, o sistema bancário é um efectivo bem público. E sendo-o, é ao Estado que deve competir a sua propriedade e gestão. Sucede que a situação actual não é essa. Mas nem por ser predominantemente privado o Estado poderá correr o risco de ver deflagrar o sistema.
Ora, é generalizadamente reconhecido que os erros e a irresponsabilidade dos banqueiros conduziram à necessidade de recapitalização dos bancos para salvaguardar esse bem público, para que eles possam exercer a sua função de concessão de crédito à economia real."
Tal como na generalidade da esquerda, fazer da
necessidade uma virtude é aqui o mote. Octávio Teixeira não se limita a
confirmar que o crédito é a base actual do sistema moderno produtor de
mercadorias na sua globalidade, o que inclui também obviamente a forma estatal;
ele faz a sua total apologia. Ele não se limita assim a afirmar que o sistema
bancário é de facto "o coração que faz circular o sangue da economia"
do sistema moderno de produtor de mercadorias; tal como os restantes amantes da
forma estatal, ele parece sobretudo empenhado em garantir o ressurgimento do
Estado como pacemaker do “sujeito
automático” (Marx) do capital, ao mesmo tempo que escamoteia completamente que
o próprio Estado há muito tempo que depende de créditos do sistema financeiro. E a forma como
o faz é também sintomática da miséria conceptual da esquerda actual.
Da crescente importância social do capital financeiro não
se pode retirar qualquer conclusão lógica (“Assim”) de que “o sistema bancário
é um efectivo bem público”. Em primeiro lugar, o sistema moderno produtor de
mercadorias é um sistema de produtores privados e o sistema bancário é composto
por agregados de capitais monetários privados; se um estado ou qualquer entidade
pública tutelar, gerir ou participar como accionista nesses agregados será para
garantir que de um euro se continua a fazer dois euros no jogo do capitalismo
de casino global, não alterando em nada a questão. Em segundo lugar, um bem
público só pode ser um bem nacional, ou seja, com uma escala que o sistema financeiro
há muito transcendeu. Não é por acaso que Teixeira prossegue com uma condição
(“sendo-o”), à qual junta um dever do Estado, para no fim desmentir o sistema bancário
como “efectivo bem público” (“a situação actual não é essa”). Portanto: o
sistema bancário é “um efectivo bem público”, pode não sê-lo e hoje não o é; a
confusão é total. Na realidade, o sistema bancário como “bem público” só existe
na cabeça de Octávio Teixeira; não passa portanto do tradicional wishful thinking de esquerda.
Fazendo fé no que é “generalizadamente reconhecido”,
também aqui se acredita que a crise do sistema moderno produtor de mercadorias
resulta de meros “erros e irresponsabilidade dos banqueiros” que teimam em não
reconhecer o sistema bancário como um “bem público” a salvaguardar para que os
bancos possam mais uma vez “exercer a sua função de concessão de crédito à
economia real”. A decadência da explicação acompanha aqui, passo a passo, a
decadência do sistema.
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